sábado, 18 de março de 2023

As liberdades políticas não são como as outras

Jason Brennam

A maioria dos norte-americanos e dos cidadãos da Europa ocidental, independentemente do partido em que tendem a votar, abraça uma espécie de liberalismo filosófico: a visão de que cada indivíduo tem uma dignidade, fundada na justiça, que lhe confere uma extensa gama de direitos e liberdades – direitos e liberdades que não podem facilmente ser ultrapassados ou substituídos pelo bem social maior.

Estes direitos são como trunfos nos jogos de cartas: proíbem outros de nos usar, de interferir conosco ou de nos prejudicar, mesmo que fazê-lo produzisse boas consequências para terceiros.

Na linguagem contemporânea nos EUA por vezes usa-se a palavra liberal com o significado de qualquer pessoa à esquerda do centro, mas em filosofia política esta refere os que pensam que a liberdade é o valor político fundamental.

Os liberais – seguindo as pegadas de Mill – normalmente defendem que devia ser permitido as pessoas fazerem más escolhas no caso de estarem apenas a causar mal a si próprias. Para ilustrar esta ideia, imagine que Izzy – um homem solteiro, sem filhos, na casa dos 20 anhos – é imprudente. Izzy come em excesso, faz muito pouco exercício e gasta de mais. Independentemente da possível mediocridade das decisões de Izzy, este apenas está a fazer mail a si mesmo. Deixe-se que viva como lhe aprouver. As suas escolhas são más, mas não temos o direito de o impedir de as fazer.

Muitas pessoas pensam que, da mesma maneira que Izzy tem o direito de comer a ponto de sofrer um ataque cardíaco, também uma democracia tem o direito de se governar a ponto de sofrer uma crise econômica. Quando uma democracia toma decisões más, imprudentes ou irracionais, isso é o equivalente de Izzy tomar decisões más, imprudentes ou irracionais.

Esta analogia está errada. Um eleitorado não é como um indivíduo: é um conjunto de indivíduos com objetivos, comportamentos e qualificações intelectuais diferentes. Não é um corpo unificado em que cada pessoa defende as mesmas ideias políticas. Em vez disso, algumas pessoas impõem as suas decisões às outras.

Se os votantes agirem tolamente, não se prejudicam apenas a si próprios. Lesam votantes mais bem informados e mais racionais, votantes minoritários, cidadãos que se abstiveram de votar, gerações futuras, crianças, imigrantes e estrangeiros que não podem votar, mas ainda assim estão sujeitos a essas decisões da democracia ou são prejudicados por elas. Tomar decisões políticas não é escolher para si próprio; é escolher para todos. Se a maioria tomar uma decisão caprichosa, outros têm de se sujeitar aos riscos que ela envolve.

Assim, a tomada de decisão política, seja democrática seja de outro tipo, tem uma exigência justificativa maior que as decisões tomadas para nós próprios. Para justificar direitos liberais fundamentais, temos [mesmo] de explicar por que razão os indivíduos devem ser autorizados a prejudicar-se.

É uma tarefa difícil, e ainda hoje alguns filósofos estão convencidos de que devemos ser livres de impedir os outros de fazerem escolhas más, mesmo quando essas escolhas não prejudicam mais ninguém.

Justificar a democracia dá mais trabalho: temos de dizer por que razão algumas pessoas devem ter o direito de impor decisões más às outras. Especificamente, como mostrarei nos capítulos seguintes, para justificar a democracia temos de explicar por que razão é legítimo impor decisões tomadas de modo incompetente a pessoas inocentes.

Limito o meu uso do conceito de liberdades políticas neste livro para incluir apenas o direito de votar e o direito a concorrer e exercer cargos e posições de poder político. Algumas pessoas preferem um uso mais abrangente do conceito, incluindo aí os direitos de discurso político, reunião e formação de partidos políticos. Neste contexto, identifico-os como liberdades civis, como instâncias de liberdade de expressão e de livre associação.

Por exemplo, classifico o meu direito de escrever este livro sobre a participação política como uma liberdade civil, em vez de uma liberdade política.

Pretendo que isto seja uma condição, não um ponto de análise conceptual. Nada de substantivo decorre dos rótulos que usamos. O motivo pelo qual estou interessado no direito de voto e de ocupação de lugares de governação é estes direitos – ao contrário dos que designo por liberdades civis ou econômicas – constituírem sobretudo direitos a exercer ou a tentar obter poder sobre os outros.

Os nossos direitos à liberdade de expressão geralmente conferem-nos poder apenas sobre nós mesmos, enquanto os direitos de voto em geral nos conferem – como coletivo, se não como indivíduos – um poder significativo sobre os outros.1

1 Claro que por vezes os nossos direitos de expressão nos concedem um certo poder sobre os outros, razão pela qual alguns filósofos questionam se deve haver limites à liberdade de expressão, como o discurso de ódio. Não assumo qualquer posição sobre esta questão aqui.

Título e Texto: Jason Brennan, in “Contra a Democracia”, Editora Gradiva, 2020, páginas 21/23
Digitação: JP, 18-3-2023


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