domingo, 19 de março de 2023

[As danações de Carina] Vale tudo em nome do amor

Carina Bratt

Com todo meu carinho, para a pequena Bianca, minha afilhada. 

SEMPRE QUE VIA A LILIANE, Tomás aos dezessete, ficava pensativo. Não só pensativo, igualmente apreensivo, amolado, contrariado e meditabundo (1). Com o coração aos trancos e barrancos. O chão se abria. Tudo fugia a seus pés. O ar que respirava se tornava rarefeito (2). Se escondia por entre montanhas e desfiladeiros, se divorciava atarantado. Nisso tudo, um único motivo movia seu dia a dia. Amava perdidamente a bela e esfuziante Liliane.  

Mais que amava a garota. A venerava desesperadamente. Simples, assim. A cobiçava com uma loucura indescritível, com uma força surgida além da razão. Porém, levado pelo medo de um fora inesperado, rude, fortuito, seu gostar se reprimia. Não só se consternava (3), se trancava, se fechava por inteiro sobre seus medos. Se aferrolhava como se temesse seguir em frente e dar de cara com uma decepção degradante causada pela megera Infelicidade a lhe esperar numa curva onde não pudesse seguir usando uma rota de fuga. 

Por Deus, entre esses momentos de altos e baixos, como dizer a ela que a amava desde que a vira pela primeira vez na sorveteria do Romualdo? Para tornar mais densa a sua vidinha amorosa, se remoía por dentro só em pensar em como fazer para ser visto, notado, querido, e, sobretudo, amado? Melhor dito, como se glorificar galardoado, recompensado, correspondido? Pensou em tudo. 

Telefonemas para o celular dela, bilhetinhos com frases apaixonadas e melosas dentro dos cadernos. Não, não surtiria o efeito desejado! Quem sabe pelos amigos de todos os dias, aqueles mais chegados que marcavam presença constante ao lado da prestimosa lhe servissem de ponte? Nem pensar! 

Havia uma saída meio obscura, capenga. A colega dela. A que não largava de seu pé, a que se transformara em unha e carne, tampa e panela, meia e sapato, chave e fechadura. Não outra, senão a Aurora... claro, a Aurora... a Aurora?! Qual o quê! Essa garota fora de cogitação! A Aurora, não fosse por um probleminha difícil de ser resolvido, seria a única amiga, entre as tantas, que poderia chegar para ela e fazer o favor de levar o recado. 

Obviamente, existia um pesadelo. Aliás, um tormento seríssimo. Um engasgo pernicioso e altamente intransponível. A Aurora, mesma idade dele, suspirava de amores pelo rapaz. Tomás sabia de tal sentimento. Apesar disso, o negócio dele: a doce e meiga Liliane. Por ela, removeria montanhas, buscaria uma estrela cadente, mudaria o curso de rios e lagos, cachoeiras e açudes... 

Sem pestanejar, sem pensar nos prós e contras, sem sopesar as consequências vindouras, Tomás roubaria as joias do Principe mais rico do mundo para dar a ela de bom grado, de presente, se, em troca, unicamente em barganha, tivesse o seu amor correspondido. 

Por seu turno, sem que Tomás soubesse, ou imaginasse, Liliane, aos quinze, também morria de amores por ele. Verdade! Esse sentimento infindo começara aquele dia em que o vira, na sorveteria do Romualdo. Desde então, uma afeição enérgica e indescritível, uma inclinação estremecida mexera com seu ‘eu’ interior e ela se derreteu toda quando o viu comendo um pote enorme de açaí. 

Foi, a bem da verdade, amor à primeira vista. Um amor grandioso, dilatado, amplo, volumoso, forte, indestrutível, inimitável. Um amor não para ‘açaír’, à vista de todo mundo, um gostar para ser guardado a sete chaves num lugar escondidinho dentro da alma, onde somente ela teria acesso ilimitado sem que nada ou coisa alguma viesse desvirtuar a sua essência magnânima nascida do mais profundo do seu recôndito (4) transbordante de sonhos e quimeras nascidas dos contos das mil e uma noites.   

Liliane pensara em tudo. Inclusive em pedir à Aurora que fosse até o grande amor da sua vida e lhe dissesse o quanto morria de amor por ele, a ponto de fazer com que uma dessas loucuras insensatas e assoberbantes viralizasse nas redes sociais. Sabia, também que Aurora sentia o mesmo que ela em relação a Tomás. Várias vezes ela se declarou ‘apaixonada’ e por certo, se abrisse a guarda, a amizade entre ela e a sua melhor amiga, estaria comprometida.   

Até que um dia... aconteceu. O destino uniu os dois de uma forma inusitada (5), ou seja, dentro de um contexto que nenhum deles havia sequer imaginado. Na localidade onde moravam, havia um parque enorme que se perdia de vista. Liliane passeava de bicicleta e Tomás voava a bordo de um par de patins. Vinham adoidados em carreiros opostos. De repente, do nada, o Cupido (6) entrou em ação. Numa curva fechada, a bicicleta de Liliane se chocou frontalmente com os patins dele. 

Nesse imprevisto, se engalfinharam pelo chão. Rolaram um por dentro do outro, se rasgaram, até pararem agarrados e sapecados por uma série de hematomas causados por conta do ‘incidente’. A partir daí, o milagre. Liliane e Tomás, não mais se desgrudaram. O cupido caprichou. Foi um pouco mais longe.  Nove meses depois, nasceu Bianca, uma menininha linda e encantadora. Dizem, à boca miúda: ‘a fuça sapeca do pai, os olhos meigos e serenos da mãe’. 

EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA: História de amor com personagens reais. Liliane e Tomás, hoje moram no meu prédio, dois andares abaixo. A minha amizade com Liliane, começou na padaria, onde tomamos, quase todos os dias, o café matinal. Do nosso apego sincero e cada vez mais crescente, acabei convidada para batizar a pequena Bianca. Pasmem, viramos comadres.  

Notas de rodapé: 
1) Meditabundo – Triste, amedrontado. 
2) Rarefeito – Destemperado, ampliado. 
3) Consternava – Que causa desalentamento ou mágoas. 
4) Recôndito – Tudo aquilo que está encoberto ou dissimulado. 
5) Inusitada – Coisa que não surge com frequência, tampouco se apresenta desusado. 
6) Cupido – Um ser mitológico que segundo a crendice popular, junta as pessoas usando suas flexas acertando os corações apaixonados.  

Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha no Espírito Santo. 19-3-2023  

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