domingo, 26 de fevereiro de 2023

[As danações de Carina] Ontem e hoje. Duas realidades que não se entrelaçam

Carina Bratt

UMA VEZ, quando eu ainda era muito pequena, meus pais me levaram num Drive-in. Papai colocou o carro bem lá na frente, de maneira que pudéssemos ver a tela inteira. Passava um desenho engraçado, antes do filme e papai, à certa altura, me passou para o banco da frente. Fiquei sentada entre os dois, compenetrada. Parecia uma mocinha vivendo seu primeiro amor. Perninhas cruzadas, segurando a bolsa de mamãe, lembro que peguei o seu batom e passei nos lábios. Ela olhou para mim com uns olhos cheios de ternura, de uma ternura indescritível e me abraçou com emoção. De repente eu coloquei os pés no colo de papai e recostei a cabeça nos ombros de mamãe. Não vi mais nada. Quando realmente o filme começou eu estava dormindo, à sono solto...

Nunca me senti tão bem e tão protegida, como nesses momentos. Havia o calor dos dois seres que eu amava de paixão, em torno dos meus oito anos e, isso é o que trazia a tranquilidade plena para o meu coração mal desabrochado para as coisas da vida. Hoje, já moça feita, me sinto desprotegida. Desamparada, só, perdida num turbilhão. Papai se separou da mamãe, casou de novo, com outra mulher e vive a sua vida nova dentro da nova vida. Pensam em ter um filho. Mamãe também arranjou alguém e vive feliz, embora, às vezes, ao olhar para ela, sinta um vazio imenso em seus olhos serenos. O fato é que não sou mais feliz. O sentido de felicidade quebrou o encanto.

Em seu lugar, um vazio imenso veio e veio de malas prontas, para ficar por longo tempo. Uma solidão cruel tomou conta de tudo. Mas, ainda assim, e sobretudo, espero um reforço. Como se algo bom surgisse do passado trazido pela fadinha mágica que nunca saiu inteiramente do meu coração. Sonho que no minuto seguinte, um momento de puro encantamento tome forma e me invada e me devolva o mundo roubado, a felicidade perdida, onde cada minuto me restabeleça o elo perdido, e eu retome o caminho em busca do futuro.  Ontem mesmo eu tinha no peito a sensação do eterno, como um encanto sagrado que jamais seria violado ou tocado.

Hoje, entretanto, sinto que pesadas brumas querem toldar meus passos e cegar meus olhos para que não veja que estrada deva seguir. O tempo da minha infância ficou na lembrança, como um sonho bonito que sonhei por um tempo determinado, como igualmente, a felicidade dos meus pais, enquanto permaneceram juntos, trilhando pela mesma senda, até que cada um, belo dia, descobriu que podia viver sem o outro. Em certas manhãs, muitas vezes me é difícil saber que vou acordar e que os dois não vão estar ali, para tomar comigo o café matinal. Às vezes me perco em grandes momentos de tristezas e melancolias, como se tivesse que ficar num quarto escuro, trancada, à mercê da Cuca ou do moleque Saci.

Carrego, no fundo, cicatrizes de feridas mal resolvidas. Marcas de um tempo que não se delimitou, que não se formalizou, nem se definiu. E se pudesse voltar à rever aquele filme, escolheria novamente o que papai me levou. A certa altura, papai me passou para o banco da frente. Uau! Fiquei sentada entre os dois, compenetrada. Parecia uma mocinha vivendo seu primeiro amor. Perninhas cruzadas, segurando a bolsa de mamãe, lembro que peguei o seu batom e passei nos lábios. Ela olhou para mim com uns olhos cheios de ternura, de uma ternura indescritível e me abraçou com emoção. De repente eu coloquei os pés no colo de papai e recostei a cabeça nos ombros de mamãe. Não vi mais nada e, quando realmente o filme começou eu estava dormindo, à sono solto. Não! Meu Deus, quando eu acordei, estava vivendo meu agora, vegetando num turbilhão de lembranças que insistem levar para bem distante meus idos de uma infância que parecia IMORREDOURA. 

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 26-2-2023 

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