sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Território inominado

Aparecido Raimundo de Souza 

O CAMILO
, dono da sorveteria, puxa conversa com a jovem que está em seu estabelecimento, confortavelmente sentada numa das mesas à espera do namorado, ou mais precisamente do doutor Brás, advogado da prefeitura. Àquela hora, sem cliente, o sujeito puxa conversa. Pergunta:
— Senhorita, desculpe a intromissão. O que a prezada é do doutor Brás?
A beldade se vira para seu interlocutor e responde:
— Namorada.
— Fala sério?
— Pareço estar mentindo?
— É a impressão que tenho. 
— Desculpe. Sinto muito. Mas eu sou mesmo a namorada do doutor Brás. 
— Realmente fiquei sabendo ontem que o doutor Brás estava de compromisso. A princípio pensei que fosse brincadeira, depois, a Chica, da birosca aqui ao lado, me falou que era com uma pessoa de fora. Horas mais tarde topei com a Rute, do Samuel, o dono da padaria, e ela me falou que não era ninguém de fora, e, sim, uma moça daqui mesmo da região. Ainda diante disso não levei muita fé. Chica mente muito e Rute não se escreve o que fala... 
— Mas desta vez elas não mentiram. Sou eu mesma... 
— Perdão, como é sua graça? 

— Larissa. 
— Larissa. Bonito nome. Muito prazer. Eu sou o Camilo. Mas me diga. Por que saiu ontem com outro moçoilo e não com o doutor Brás, seu entre aspas, “namorado?”.
— Aquele rapaz é o Belizário. Meu irmão.
— Não é bem isso que a cidade está comentando...
— Que se dane a cidade. Aquele é meu irmão.
— Pois então, senhorita Larissa, agora falando sério. Pensei que a namorada do Brás fosse a outra. 

Larissa se voltou inteiramente para o Camilo e grudou os lindos olhos verdes e penetrantes nos dele:
— Outra? Que outra?
— A tal da “Felizarda!”.
— Estou boiando. Quem é a “Felizarda?”.
— É o que pretendo descobrir...
— Até prova em contrário, eu sou a oficial. Portanto, essa “Felizarda” deve ser imaginação do pessoal. Por aqui, estou percebendo, vocês são meio fofoqueiros.
— Não somos não. Só falamos o que vemos. Desculpe. De qualquer forma, a oficial, até que tudo se esclareça, é a...
—... A...?!
— A fazendeira Gertrudes, filha única e herdeira do doutor Camafeu Boraborinha.
— Gertrudes?

— Sim, foi esse nome que eu acabei de falar.
— Não me faça rir, moço. Estou passando mal. Gertrudes. Kikikikikikikikikikikiki... conta outra. Gertrudes?
— Por que ri tanto. Você é maluca?
— Que eu saiba, não. Kikikikikikikikikikikiki...
— Então?
— Achei gozado você falar nessa tal de Gertrudes.
— Até que o quadro mude a moldura, ela é a “Felizarda” do doutor Brás.
— Deixa de bobeira, cara. Isso é mais uma invenção dessa galera idiota que não tem o que fazer.
— Pode até ser. Mas a senhorita ficou vermelha de raiva. Está rindo, na verdade, de ódio. Percebo que se derrete como um de meus sorvetes.

— O quê? Como disse?
— Que a senhorita está se decompondo. Ri de raiva, de ódio. Não seria melhor, antes que vire água corrente, que eu a acomode num pauzinho?
— Pauzinho? Que pauzinho?!
— Na verdade, me expressei mal. O certo é palitinho. Desses que a gente coloca nos gelados que fabrico aqui.
— Amigo, tá me tirando?
— Não, mas pensa comigo. Se eu colocar a senhorita num palitinho, grosso modo, num pauzinho, prometo que lhe acomodarei com todo cuidado num de meus freezers.

— Meu Deus, que cidade estranha. Que povo mais sem noção!
— Ora, vamos, eu insisto. Me permita colocar a senhorita num de meus congeladores.
— E para quê?
— Desculpe pelo que vou dizer moça. É para lhe “chupar” depois. “Chupar”, no bom sentido. Saborear a sua delicadeza estonteante como um gostoso picolé de açaí.
— Amigo, com todo respeito. Eu poderia mandar você e a sua sorveteria para os quintos. Como sou educada... somente me responda, seu chato: você tem mãe?
— Tenho.
— Gosta dela?
— Amo...
— Então mude a prosa ou mandarei você enfiar a sua querida mãezinha nesse seu rabo magro e desmilinguido.

— Malcriada...
— Desculpe. Mas quem fala o que quer, ouve o que não quer.
— Kikikikikikikikikikikiki... quer saber? Estou me esvaindo em peidos.
— Em peidos? Kikikikikikikikikikikiki...
— Isso mesmo... flatulências. Principalmente quando minha boca resolve soltar as verdades que escuta. Desculpe. Não quis ofender. Me perdoa pelos traques cheirando a palavrões.
— Melhor eu cair fora. Tchau. Passe bem. Leve para seus amigos dessa cidadezinha de bosta o meu desprazer em ter conhecido e falado com você. Boa tarde.

— Boa tarde, dona Gertrudes.
— Meu nome é Larissa, seu imbecil.
— Não é. Seu nome é Gertrudes, “A felizarda”.
— Amigo, vá tomar no seu...
Nesse momento pinta no pedaço, o doutor Brás. Larissa, ao vê-lo, pula da cadeira e corre a abraçá-lo. Sorri, brejeira:
— Oi amor...
— Oi, minha princesa. Desculpe a demora. Vejo que já conheceu meu amigo Camilo? 
— Tive o desprazer, infelizmente... ele é um chute no saco...

— Por que diz isso, amor. Esse cara aqui... é um bom amigo. Pena que ele... 
— Eu sei, eu sei. Já descobri. Fala demais. Encheu meu saco com a história de uma tal de Gertrudes. 
— Como é que é? 
— Falou que você tem outra mulher aqui nas redondezas e que ela se chama Gertrudes. A sua “Felizarda”. Quer me explicar essa história? 
— Amor, não sei do que está falando...

— Como não sabe? Esse seu amigo abestalhado me contou tudo. Agora desembucha. Quem é essa sirigaita da Gertrudes, filha de um tal doutor Camafeu Boraborinha?
— Amor, não existe nenhuma Gertrudes. De onde tirou tamanha tolice?
— Foi esse filho de uma jumenta que me saiu com essa conversa fora de esquadro...
— Pelo amor de Deus! Princesa, me escuta. O Camilo é mudo. Como poderia ter lhe falado dessa tal Gertrudes?
— Como é que é Brás. Agora você também resolveu me fazer de palhaça? Acaso me tira como otária?

— Jamais, minha princesa. Eu disse que o Camilo é mudo. Amor, por acaso você se deu ao trabalho de olhar em derredor? Veja. Ali naquele canto, tem papel e caneta. E, ao lado, a tabuleta. “OI GENTE. SOU MUDO. FAÇA SEU PEDIDO ESCREVENDO”. Não reparou? O Camilo, meu amor, é mudo... mudo de nascença.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Santo Eduardo, Campo dos Goytacazes, Rio de Janeiro. 17-2-2023

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