terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Como se embalada à vácuo

Aparecido Raimundo de Souza              

EMBORA AINDA SEJA super cedo, o coletivo segue seu destino de todas as manhãs, lotado, como sempre, em direção ao centro da cidade. Perdida em meio a aglutinação (1) de cabeças e pernas, sovacos e cabelos cheirando a sabonetes baratos, viaja uma donzela na flor pecaminosa dos vinte.  Exatamente é ela que estou comendo com os olhos. Bem sei, não é de quem se desvie a atenção com facilidade. A linda fêmea, está sentada ao lado de uma gordinha à esquerda da roleta, naquele banco em que se viaja de costas para o motorista, todavia, com o inconveniente de duas pessoas de frente uma para a outra, cara a cara, olho no olho.

Ao lado dela, em pé, marmanjos de todas as idades seguem, os semblantes arregalados, água na boca, aspirando o ar como se fossem cães de caça guiados pelo cheiro de uma presa na iminência de ser abocanhada. Elegante no seu trajar feminino, a deusa usa um vestido colado ao corpo, grudado mesmo, como pulga no gatinho de estimação, como elefante na tromba. Seu perfil esbelto e escorreito (2), lembra aquelas gostosas nuas em pelo, os bumbuns empinados, elegantemente estampadas em calendários encontrados em banheiros e paredes de borracharias de beira de estrada e oficinas de automóveis.

De tempos em tempos, para excitar os espectadores colados na atmosfera da sua beleza, a flor esbelta puxa discretamente o modelo para baixo, cobrindo as pernas —, ou o que, no meio delas, se disfarça num triângulo de coloração rosa choque. Com tal gesto, desveste, sem querer, um par de seios fartos e redondinhos, convidando os instintos afogueados da rapaziada a praticarem, ainda que em pensamentos marotos, seus melhores pecados sexuais incubados. Por todo o coletivo, se eleva um rumor espalhafatoso e alegre. Alguns cochicham frases feitas. Meia dúzia insinua piadas degradantes. Outros riem, inventam histórias mirabolantes, e se gabam, acaso pudessem fazer o diabo numa cama, tendo aquele prato “apetitoso” ao alcance de suas taras e anomalias. 

À parecença, lembra também, zangões em busca de abelhas assanhadas. Nesse arruma aqui, se ajeita ali, bom seria se ela deixasse tudo à mostra, como aqueles legítimos grains de beauté (3) pequenininhos, idênticos, juntinhos um do outro, a semelhança de Castor e Pólux (4) em pleno colo, quase na embocadura do decote e a alguns dedos abaixo do queixo. Pelo menos, não precisaríamos desejar, à gestos incontidos, que o acaso desse um jeito de acabar, de vez, com aquela agonia consorciada e a encantadora se visse, afinal pelada, numa total ausência de ornatos e adereços.

Mais que óbvio, se ocorresse esse evento, tenho certeza, os senhores respeitosos que dividem comigo a apertada condução, entrariam em completo estado de letargia grugrulhar (5). Sou de opinião que essas peças conhecidas como “tomara que caiam, que subam, que se rasguem, ou que se fodam”, não importa, só servem para isso. Realçar o vulnerável de uma mulher, na sua melhor essência, como a pedra preciosa bruta transformada em joia reluzente e exibida, a depois, em vitrines de lojas chiques de departamentos.

Não sei explicar por quais motivos ou circunstâncias, as dondocas insistem em usá-los, vez que, aparentemente, tais acessórios não são confortáveis, e, em vista disso, precisem, em público, ficar acertando pequenos detalhes, retocando, aqui e acolá, objetivando tapar o sol com a peneira, ou seja, o que deveria permanecer dissimilado no seu mais ignoto (6) secreto. Defendo ferrenhamente a ideia de que o airoso é para ser visto, revisto revisitado, adorado, devorado, amado. Amado, devorado, adorado, revisitado, sempre, sempre, sempre, indefinidamente. 

Indefinidamente, seja em que circunstancia for. Jamais, para o formoso, lhe deve ser imposto limites, como não, mesmo trilhar, para tudo aquilo que, nas suas regalias e luxúrias mais avassaladoras, agradem aos sentidos e os deixem a ver passarinhos cantando onde sequer haja vestígios de gaiolas de portas abertas à espera de uma ave descautelosa. O que pretendo sinalizar, com todo este papo de cerca Lourenço, é que, são esses mimos, essas dádivas, esses regalos cotidianos, que as representantes do belo oposto usam, que fazem do nosso dia a dia (ainda que solapados dentro de um quarenta janelinhas, onde as pessoas se comprimem, como sardinhas em lata) a magia de seguirmos vivos e de coração a querer sair boca afora.

Uma avalanche de inesquecíveis encantos, acompanhados de um comprazimento jamais sonhado paira no ar. Por conta, no geral, a coisa funciona como uma espécie de sedução única, movimentada por mãos incógnitas, onde entra em cena, o inesperado alimentando nosso ego e dando vida plena ao fetiche de nossa alma, como uma parafilia (7) exibicionista, encorajando o sangue, por seu turno, a conflagrar mais forte e alvoroçado dentro das veias. São, pois, essas indumentárias curtas, essas vestimentas breves, soltas e ligeiras, que as poderosas usam, orvalhadas à poucos panos, ou melhor, quase sem nada de pudor, onde, aliás, o despudor aflora depravado, sem toques e retoques que o nosso lado animal se vê cada vez mais fortificado.

Nosso “eu” masculino cria asas, se revigora e se agiganta, contribuindo para que o espírito intranquilo do sexo se eleve a uma satisfação pessoal jamais imaginada. Nós todos (em vista dessas preciosidades... se nos fosse dada à honra, lógico), preferiríamos um ataque direto, sem intermediários. Grosso modo, um partir para cima, de primeira, sem meios ternos, entrelaçado num cinco contra um, à lembrança da sublimidade endiabrada, vista, assim, só de relance, entronizada, escondida, como uma flor prestimosa, rara, única, de valor inestimável, prestes a ser roubada, de entre as fendas maravilhosamente esculpidas pelo Criador.

Percebo nesta viagem de sonhos imensuráveis, que outras figuras, em idade mais avançada que eu, cavalheiros de tempos remotos, se retraem, se encouraçam diante desta candura exalando pecados por todos os poros da epiderme. Em vista disto, se contentam em praticar apenas e tão somente o exercício das vistas através de sisudos óculos de graus. Neste aplicar quase de zelo, os vovôs se deslumbram, se encurtam, admirando, babando, deixando a saliva vir à porta da boca, numa convulsão inexplicável. Neste voltar, por certo, alimentam a fogueira inapagável do tempo passado.

Reacendem, por breves segundos, o lume daqueles gravetos. Fortificam a luz dos idos saudosos que lhes escorreram por entre os vãos dos dedos, escapando, incontinente na voragem estapafúrdica do nunca mais. De repente deixo de lado meus pensamentos e volto a me concentrar na radiosa. E faço isto no exato momento em que a ela dá uma última ajeitada na sua performance e se levanta, para tristeza geral da massa de séquitos (8) e aparvalhados comprimida à sua admiração. Pois então: o que eu mais temia, por azar, acontecerá. A venturosa deixará um punhado de almas em frangalhos. Percebo que estamos todos em alarmada indignação.

Num gesto suave, o colírio dos nossos olhos pede licença erguendo o braço e puxando a cordinha do sinal de pare. Ato contínuo, caminha solene, em direção à porta de desembarque para deixar definitivamente o ônibus, agitando, um pouco, o seu apêndice caudal em trejeitos estudados. A turma se amontoa, uns sobre os outros, os pensamentos fora das órbitas. Uma melancolia infeliz, um abatimento deprimido, infunde severidade a cada um, sem exceção. Num minuto, o dia que era tão airoso, se cobre de cinza com ares sorumbáticos de uma ausência que promete ser longa, enfadonha e cair pesada.

E, como os demais, me quedo, inerte, sem saber o que fazer. Não posso descer, ou chegaria atrasado ao serviço. Boquiaberto, carrancudo, estatelado, embasbacado e trombudo, vejo a dona da nossa alegria sair de cena indo embora, escapando por entre nossos dedos e “mais mau”, jogando um balde de água gelada em nossos afogueamentos. O reboliço tumultuante da galera é uníssono. Traz, à minha mente transtornada e contrariada, a lembrança de um gaiato balançando uma bandeira vermelha na frente de um punhado de touros ensandecidamente enfurecidos.

Notas de rodapé: 
1) Aglutinação – Unir, juntar. 
2) Escorreito – Culto, apurado. 
3) Grains de beauté – Sinal ou verrugas. 
4) Castor e Pólux – Dois jóvens heróis da mitologia grega. Os “Gêmeos Celetes”.
5) Grugrulhar – Ferver, estar em ebulição. 
6) Ignoto – Enigmático, incognito. 
7) Parafilia – É um padrão de comportamento sexual no qual a fonte predominante do prazer não se encontra na copula, mas em outra atividade. 
8) Séquitos – Mesma coisa que uma comitiva, ou um aglomerado em procissão. 


Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Santo Eduardo, Campo dos Goytacazes Rio de Janeiro. 7-2-2023  

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