Aparecido Raimundo de Souza
Ao lado dela,
em pé, marmanjos de todas as idades seguem, os semblantes arregalados, água na
boca, aspirando o ar como se fossem cães de caça guiados pelo cheiro de uma
presa na iminência de ser abocanhada. Elegante no seu trajar feminino, a deusa
usa um vestido colado ao corpo, grudado mesmo, como pulga no gatinho de
estimação, como elefante na tromba. Seu perfil esbelto e escorreito (2), lembra
aquelas gostosas nuas em pelo, os bumbuns empinados, elegantemente estampadas
em calendários encontrados em banheiros e paredes de borracharias de beira de
estrada e oficinas de automóveis.
De tempos em
tempos, para excitar os espectadores colados na atmosfera da sua beleza, a flor
esbelta puxa discretamente o modelo para baixo, cobrindo as pernas —, ou o que,
no meio delas, se disfarça num triângulo de coloração rosa choque. Com tal
gesto, desveste, sem querer, um par de seios fartos e redondinhos, convidando
os instintos afogueados da rapaziada a praticarem, ainda que em pensamentos
marotos, seus melhores pecados sexuais incubados. Por todo o coletivo, se eleva
um rumor espalhafatoso e alegre. Alguns cochicham frases feitas. Meia dúzia
insinua piadas degradantes. Outros riem, inventam histórias mirabolantes, e se
gabam, acaso pudessem fazer o diabo numa cama, tendo aquele prato “apetitoso”
ao alcance de suas taras e anomalias.
À parecença, lembra também, zangões em busca de abelhas assanhadas. Nesse arruma aqui, se ajeita ali, bom seria se ela deixasse tudo à mostra, como aqueles legítimos grains de beauté (3) pequenininhos, idênticos, juntinhos um do outro, a semelhança de Castor e Pólux (4) em pleno colo, quase na embocadura do decote e a alguns dedos abaixo do queixo. Pelo menos, não precisaríamos desejar, à gestos incontidos, que o acaso desse um jeito de acabar, de vez, com aquela agonia consorciada e a encantadora se visse, afinal pelada, numa total ausência de ornatos e adereços.
Mais que
óbvio, se ocorresse esse evento, tenho certeza, os senhores respeitosos que
dividem comigo a apertada condução, entrariam em completo estado de letargia
grugrulhar (5). Sou de opinião que essas peças conhecidas como “tomara que
caiam, que subam, que se rasguem, ou que se fodam”, não importa, só servem para
isso. Realçar o vulnerável de uma mulher, na sua melhor essência, como a pedra
preciosa bruta transformada em joia reluzente e exibida, a depois, em vitrines
de lojas chiques de departamentos.
Não sei explicar por quais motivos ou circunstâncias, as dondocas insistem em usá-los, vez que, aparentemente, tais acessórios não são confortáveis, e, em vista disso, precisem, em público, ficar acertando pequenos detalhes, retocando, aqui e acolá, objetivando tapar o sol com a peneira, ou seja, o que deveria permanecer dissimilado no seu mais ignoto (6) secreto. Defendo ferrenhamente a ideia de que o airoso é para ser visto, revisto revisitado, adorado, devorado, amado. Amado, devorado, adorado, revisitado, sempre, sempre, sempre, indefinidamente.
Indefinidamente,
seja em que circunstancia for. Jamais, para o formoso, lhe deve ser imposto
limites, como não, mesmo trilhar, para tudo aquilo que, nas suas regalias e
luxúrias mais avassaladoras, agradem aos sentidos e os deixem a ver passarinhos
cantando onde sequer haja vestígios de gaiolas de portas abertas à espera de
uma ave descautelosa. O que pretendo sinalizar, com todo este papo de cerca
Lourenço, é que, são esses mimos, essas dádivas, esses regalos cotidianos, que
as representantes do belo oposto usam, que fazem do nosso dia a dia (ainda que
solapados dentro de um quarenta janelinhas, onde as pessoas se comprimem, como
sardinhas em lata) a magia de seguirmos vivos e de coração a querer sair boca
afora.
Uma avalanche
de inesquecíveis encantos, acompanhados de um comprazimento jamais sonhado
paira no ar. Por conta, no geral, a coisa funciona como uma espécie de sedução
única, movimentada por mãos incógnitas, onde entra em cena, o inesperado
alimentando nosso ego e dando vida plena ao fetiche de nossa alma, como uma
parafilia (7) exibicionista, encorajando o sangue, por seu turno, a conflagrar
mais forte e alvoroçado dentro das veias. São, pois, essas indumentárias
curtas, essas vestimentas breves, soltas e ligeiras, que as poderosas usam,
orvalhadas à poucos panos, ou melhor, quase sem nada de pudor, onde, aliás, o
despudor aflora depravado, sem toques e retoques que o nosso lado animal se vê
cada vez mais fortificado.
Nosso “eu”
masculino cria asas, se revigora e se agiganta, contribuindo para que o
espírito intranquilo do sexo se eleve a uma satisfação pessoal jamais
imaginada. Nós todos (em vista dessas preciosidades... se nos fosse dada à
honra, lógico), preferiríamos um ataque direto, sem intermediários. Grosso
modo, um partir para cima, de primeira, sem meios ternos, entrelaçado num cinco
contra um, à lembrança da sublimidade endiabrada, vista, assim, só de relance,
entronizada, escondida, como uma flor prestimosa, rara, única, de valor
inestimável, prestes a ser roubada, de entre as fendas maravilhosamente
esculpidas pelo Criador.
Percebo nesta
viagem de sonhos imensuráveis, que outras figuras, em idade mais avançada que
eu, cavalheiros de tempos remotos, se retraem, se encouraçam diante desta candura
exalando pecados por todos os poros da epiderme. Em vista disto, se contentam
em praticar apenas e tão somente o exercício das vistas através de sisudos
óculos de graus. Neste aplicar quase de zelo, os vovôs se deslumbram, se
encurtam, admirando, babando, deixando a saliva vir à porta da boca, numa
convulsão inexplicável. Neste voltar, por certo, alimentam a fogueira
inapagável do tempo passado.
Reacendem,
por breves segundos, o lume daqueles gravetos. Fortificam a luz dos idos
saudosos que lhes escorreram por entre os vãos dos dedos, escapando,
incontinente na voragem estapafúrdica do nunca mais. De repente deixo de lado
meus pensamentos e volto a me concentrar na radiosa. E faço isto no exato
momento em que a ela dá uma última ajeitada na sua performance e se levanta,
para tristeza geral da massa de séquitos (8) e aparvalhados comprimida à sua
admiração. Pois então: o que eu mais temia, por azar, acontecerá. A venturosa
deixará um punhado de almas em frangalhos. Percebo que estamos todos em
alarmada indignação.
Num gesto
suave, o colírio dos nossos olhos pede licença erguendo o braço e puxando a
cordinha do sinal de pare. Ato contínuo, caminha solene, em direção à porta de
desembarque para deixar definitivamente o ônibus, agitando, um pouco, o seu
apêndice caudal em trejeitos estudados. A turma se amontoa, uns sobre os
outros, os pensamentos fora das órbitas. Uma melancolia infeliz, um abatimento
deprimido, infunde severidade a cada um, sem exceção. Num minuto, o dia que era
tão airoso, se cobre de cinza com ares sorumbáticos de uma ausência que promete
ser longa, enfadonha e cair pesada.
E, como os
demais, me quedo, inerte, sem saber o que fazer. Não posso descer, ou chegaria
atrasado ao serviço. Boquiaberto, carrancudo, estatelado, embasbacado e
trombudo, vejo a dona da nossa alegria sair de cena indo embora, escapando por
entre nossos dedos e “mais mau”, jogando um balde de água gelada em nossos
afogueamentos. O reboliço tumultuante da galera é uníssono. Traz, à minha mente
transtornada e contrariada, a lembrança de um gaiato balançando uma bandeira
vermelha na frente de um punhado de touros ensandecidamente enfurecidos.
1) Aglutinação – Unir, juntar.
2) Escorreito – Culto, apurado.
3) Grains de beauté – Sinal ou verrugas.
4) Castor e Pólux – Dois jóvens heróis da mitologia grega. Os “Gêmeos Celetes”.
5) Grugrulhar – Ferver, estar em ebulição.
6) Ignoto – Enigmático, incognito.
7) Parafilia – É um padrão de comportamento sexual no qual a fonte predominante do prazer não se encontra na copula, mas em outra atividade.
8) Séquitos – Mesma coisa que uma comitiva, ou um aglomerado em procissão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não aceitamos/não publicamos comentários anônimos.
Se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-