terça-feira, 24 de janeiro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Chatas de saltos altos

Aparecido Raimundo de Souza

ENTREI NO ÔNIBUS
, logo cedo, e para meu azar, escolhi um banco próximo de uma mulher “dependurada” ao telefone celular. Como é do conhecimento de todos, falar ao telefone celular virou moda, ou melhor se transformou em febre de mais de quarenta graus. Uma doença pandêmica (1), praticamente incurável. A praga da mulher, de uma conversa quase aos gritos, entrava em outra, emendava para uma nova demanda, sem dar tréguas. Os assuntos por ela bailados davam no saco. Infernizavam. Em dias atuais, precisamos exercitar cotidianamente a paciência de Jó. Praticarmos, minuto a minuto, a sabedoria dos “antigos”, ou acabaremos perdendo o juízo e fazendo alguma besteira.

— Bia, minha máquina de costura enguiçou – começou ela – e, por causa desse imprevisto, tive que parar as encomendas que deveriam ter sido entregues ontem... aham... sim... claro... me vi obrigada a passar a mão em minha carcaça, sair às carreiras, ir lá na loja onde fiz a aquisição e implorar para o gerente que me mandasse alguém correndo, ou perderia dinheiro. Uma coisa é você jogar a grana fora, sem ter o que fazer. Outra é você atirar dinheiro no ralo, tendo o que fazer, mas sem poder executar o que havia previamente planejado.

As pessoas, em face desses aparelhos, perderam a identidade, o bom senso, a falta de tino, de decoro e do alinho. Jogaram fora o pouco que restava da lisura, da pudicícia e da vergonha. Todos, sem exceção, falam ao telefone de amor, de ódio, de sexo, de religião, de política, de futebol, de frivolidades. Fazem fofocas, tricoteiam um monte de abobrinhas sem se importarem com quem está ao lado. Entendo que por algo urgente, até seja compreensível e, nessa compreensibilidade, se engula uma conversa demorada. Entretanto, para assuntos de somenos importância, a maioria dos usuários necessitaria ter respeito não só a si próprio, como, igualmente, aos seus semelhantes.

Notadamente, em se tratando de terceiros, os descuidados deveriam ser prudentes e cautos aos tímpanos das coletividades que dividem os mesmos transportes lotados, que cheiram os desodorantes vencidos, que sentem os odores asquerosos e fortes de uma coxinha de galinha ou de um pastel de carne com prazos vencidos. Num todo, dos sofredores que engolem o mesmo ar fétido dos peidos que alguns rabos soltam como se estivessem sentados em seus vasos particulares. Acreditem, todas essas barbaridades se fazem tenebrosas. As pessoas não aprenderam a ligar a tecla “Meu Alerta Em Dia” e atinar que nós, quando em multidão, não somos obrigados a escutar, a bel prazer dos inconvenientes, papos furados, fofocas de famílias, picuinhas com vizinhos, etc., etc., etc...

Como em trocentos seguimentos existentes “pela aí”, essa sensibilidade do discernimento inexiste. Passa longe. Por estar e se fazer distanciada, é comum os nossos escutadores de novelas se cansarem de brigas as mais cabeludas entre casais, ou se fartarem com problemas voltados à cachorros, gatos e passarinhos, seja enquanto viajamos para o trabalho, ou retornamos para um merecido descanso após um dia estafante, cansativo e maçante. Mais entojado (2): ouvirmos ladainhas e clamores de bocas fechadas, sem falarmos nada. Sequer a chance de termos a mínima condição de darmos um pio em sinal de protesto:
— Meu gato, amiga, liberou geral... – seguia uma outra atrevida colada às minhas barbas na sua dolorosa via-crúcis infindável. Acredita, “miga” que o sem vergonha pegou o cartão de crédito na carteira e me jogou “nas mão?”.

Essa dondoca tinha os cabelos vermelhos. Usava uma sainha curta e espalhafatosa, mostrando as pernas e algumas estrepolias que melhor se guardadas em completo recato. Viajava no mesmo banco que eu, lado da janela e, sem mais nem menos, sacou o telefone e, ao atender, claro, se juntou à costureira “matraqueira” (3). Sem dar tempo dos demais passageiros que amargavam o longo trajeto em pé de mastigarem o fim dos acontecimentos, a prestimosa sorriu, faceira:
— Ele nunca havia feito isso antes. Disse assim para mim. Nega, vai lá no mercado e compra tudo o que precisar... obviamente... deve ter feito alguma merda e com medo que eu viesse a tomar conhecimento...

De repente, estancou. Um incidente não programado se apossou da minha colega de banco. Uma série de esternutações (4) lhe caiu, em cheio, no nariz. Rápida como quem rouba, passou os cinco dedos num lencinho dentro da bolsa, embebeu (5) em álcool gel e continuou o bate papo chato e interminável:
A costureira, por seu turno, igualmente seguia firme e forte:
— Bia, torrei tanto a paciência do gerente, que ele foi pessoalmente lá em casa e resolveu meu problema. Minha máquina de costura está tinindo. Agora mesmo estou indo entregar umas encomendas.

Na gostosa ao meu lado, os espirros molestosos (6) insistiam. Amedrontado, meti a máscara no focinho. Sei lá! Todavia, pontos adiante, uma trégua. Sem dar tratos à bola, e sem se preocupar com a minha saúde, a maviosa, sorrindo de um canto a outro da boca, emendou:
— O calhorda se abriu em mesuras, “miga”. Se escancarou em bajulações que cheguei a ficar avexada... eu falei pra ele... Tião, não sei usar esses cartões, crédito, débito... estou acostumada com dinheiro e vale compras. E tem aquela porra de digitar senhas. Odeio senhas...

A costureira não estava nem aí. Falava pelos cotovelos. Não só falava. Gesticulava, como se estivesse brigando com a pessoa do outro lado da linha:
— Bia, não, eu sei..., mas, no fim... lógico... aham!... imagine! O quê?... besta, eu?! Não, minha “flor”, não gosto de tirar proveito... sempre dei duro, desde sempre. Lutei sozinha. Você é prova disso... criei meus filhos costurando dia e noite, e o Francisco, nunca me ajudou com coisa alguma...

A este e outros infindáveis tipos de chateações, alguns malucos de plantão chamam de tecnologia avançada da era digital. Eu diria que retrogradamos. Vivemos numa fase evolutiva complexa. Vegetamos às avessas. Somo prisioneiros de uma barbárie medonha e sem volta. A Internet! Literalmente, sofremos na pele, a crucificação encarnada dessa rede infame e, para completar o quadro sistêmico, ficamos linkados (ou lincados) às pessoas eternamente destrambelhadas.

Notas de rodapé: 
1) Pandêmica – Surto de alguma doença desconhecida que atinge grande número de pessoas. 
2) Entojado – Aborrecido, repugnado, enojado. 
3) Matraqueira – Tagarela, pessoas que falam sem parar. 
4) Esternutações – Espirros involuntários. 
5) Embebeu – Molhou, ensopou. 
6) Molestosos – Tudo o que provoca enfados ou incômodos.   

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Santo Eduardo, Campo dos Goytacazes, Rio de Janeiro. 24-1-2023 

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