domingo, 22 de janeiro de 2023

Glenn Greenwald na mira dos intolerantes

Em artigo na revista Veja, o cientista político Fernando Schüler escreve sobre a importância de defender a liberdade como um princípio universal

Em artigo publicado na revista Veja, o cientista político Fernando Schüler escreve sobre o jornalista norte-americano Glenn Greenwald [foto]. Mais especificamente, sobre a maneira como o ex-Intercept está sendo alvo dos intolerantes. O motivo? Glenn defende a liberdade de expressão como um princípio universal, seja para “trumpistas, petistas ou bolsonaristas”.

Foto: Lia de Paula/Agência Senado

“O que mais me chamou a atenção foi sua defesa incondicional de princípios, coisa incomum por aqui”, diz Schüler. “Quem defende um princípio”, segundo Glenn, “não está do lado de nenhuma facção, à esquerda ou à direita”.

O cientista político lembra que, depois de defender a liberdade de expressão para parlamentares, jornalistas e influenciadores “de direita”, Glenn foi tachado de “bolsonarista”. “O não argumento que nosso pensamento preguiçoso lança contra qualquer um que arrisque divergir da tribo dominante”, observou. “Aqui, pelos trópicos, parece difícil aceitar a ideia simples de que se pode discordar 100% de uma opinião, mas defender ‘até a morte’ seu direito à expressão.”

No texto, Schüler cita outro argumento utilizado pelos intolerantes: Glenn defende “prerrogativas norte-americanas”, e as leis daquele país não se aplicam ao Brasil. “Também aí há um erro”, constatou. “Quem disse que nossa Constituição autoriza a censura prévia? Ou deixa de proteger o devido processo, o contraditório, que inclui o acesso de advogados aos autos de um processo? Ou quem sabe a inviolabilidade de nossos representantes, inscrita em seu Art. 53? Mais do que brasileiras, são prerrogativas civilizatórias, próprias de qualquer república digna desse nome.”

Mas não para aí. Há ainda um terceiro truque, segundo o colunista da revista Veja, que consiste em associar quem defende a liberdade de expressão ao apoio a “esses vândalos”. Leia-se: aos manifestantes que cometeram atos de vandalismo em Brasília. “É a lógica do tudo ou nada”, afirmou. “Ou se defende, acriticamente, qualquer medida repressiva do Estado, ou se está deixando de ‘defender a democracia’. Lógica absurda. É evidente que se deve diferenciar quem usa da violência, bloqueando estradas ou invadindo um palácio, de quem emite meramente uma opinião, desprezível que seja, nas redes sociais. Diferenciar essas coisas é parte essencial, em última instância, da fronteira que separa um regime autoritário de uma democracia liberal.”

Para Schüler, a visão de Glenn “se situa em uma faixa estreita, nos dias atuais, a um só tempo crítica das visões autoritárias que brotam na sociedade e do autoritarismo que vem do Estado, via infração a direitos individuais”. Isso terminaria por “retroalimentar o radicalismo político”.

O colunista menciona a lista de políticos e influenciadores banidos das redes sociais no Brasil. “Um deles foi Nikolas Ferreira, o jovem deputado mais votado do país”, lembrou. “Qual foi exatamente seu crime? Ele pediu que as investigações dos atos de janeiro envolvessem também autoridades federais. Dançou. Um deputado deveria ser inviolável em ‘palavras, opiniões e votos’, como diz a Constituição, para, inclusive, pedir as investigações que julgar devidas. No Brasil de hoje, foi calado. A maioria ri. Outros dão de ombros. Ainda outros andam com medo. Essas coisas surgem sempre quando aceitamos que cabe ao Estado decidir sobre a verdade, quando entra em cena o delito de opinião e quando admitimos que os tribunais, que deveriam preservar a lei, ajam com ‘ousadia’ diante da lei, como leio por aí.”

Conforme Schüler, o respeito aos princípios universais foi crucial no nascimento da ideia moderna de tolerância e dos direitos individuais. A história do filósofo Voltaire e o martírio de Jean Calas, comerciante de Toulouse acusado de matar o próprio filho, em 1761, mostram isso. “Calas tinha 63 anos e era um protestante numa cidade marcada pelo fanatismo católico”, contou o colunista. “A acusação era frágil, mas ele foi condenado ao suplício e à morte. Cada parte de seu corpo foi quebrada. Enfiaram um funil na sua garganta, por onde despejaram 17 litros de água. Depois o colocaram na roda, onde foi esticado até arrebentar. A tudo ele suportou repetindo que era inocente. Sua obstinação tocou a alma de Voltaire. Ele viu naquilo toda a barbárie do século, mas também a chama da dignidade individual. Convencido de sua inocência, torna para si uma questão de honra a reabilitação da memória de Jean Calas.”

O que encanta nesse episódio trágico, diz o cientista político, é a atitude “absurda” de Voltaire. “Voltaire era um homem consagrado, havia acabado de publicar o Cândido, e andava prestes a inaugurar seu Castelo de Ferney. E nem sequer conhecia Jean Calas. Apesar disso, por dois anos, se dedicou à reabertura do caso simplesmente em obediência a um princípio. Por fim, conseguiu. Em março de 1765, três anos depois do suplício, os juízes de Paris revisaram a condenação, e a viúva de Calas foi recebida em Versalhes por Luis XV. Na sequência, Voltaire escreve seu Tratado sobre a Tolerância. Afirma princípios simples e até hoje válidos: a ideia de que todos merecem um julgamento justo, que a tolerância é a via possível para vivermos em paz e prosperar. E que é preciso superar o fanatismo, essa ‘sombria superstição que induz as almas fracas a imputar crimes a qualquer um que não pense como elas’.”

Schüler acredita que a política substitui a religião, como a “paixão pública”. “A mensagem de Voltaire permanece: abrindo mão de certos princípios, só nos resta o universo incerto dos instintos, de nossas preferências e juízos precários sobre o bem e o mal. Se no Brasil de hoje achincalhamos um jornalista por defender a liberdade de expressão e o direito ao devido processo, é porque estamos com um problema”, observou. “Se aceitamos passivamente a volta da censura prévia, o banimento de jornalistas e deputados da internet, ou coisas ainda piores, como o bloqueio de contas bancárias, pressão econômica, censura a emissoras e mesmo a prisão por delito de opinião, é porque estamos com um problema bastante complicado. Algo que não será resolvido por uma razão instrumental, que diz ‘é preciso esticar um pouco a Constituição porque há um inimigo a ser derrotado’.”

O cientista político conclui o texto dizendo que “lembrar de Voltaire é fazer o percurso inverso, que nos vincula a certos princípios feitos precisamente para frear nossos instintos”. Segundo Schüler, “princípios que não são ‘norte-americanos’, mas que estão todos lá, na Constituição e nas leis brasileiras, cujo respeito é a única via possível para reconciliar este país que por vezes mal conseguimos reconhecer”.

Título e Texto: Redação, Revista Oeste, 22-1-2023, 12h31

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Que parágrafo interessante – e lindo!

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