Em artigo na revista Veja, o cientista
político Fernando Schüler escreve sobre a importância de defender a liberdade
como um princípio universal
Em artigo publicado na revista Veja, o cientista político Fernando Schüler escreve sobre o jornalista norte-americano Glenn Greenwald [foto]. Mais especificamente, sobre a maneira como o ex-Intercept está sendo alvo dos intolerantes. O motivo? Glenn defende a liberdade de expressão como um princípio universal, seja para “trumpistas, petistas ou bolsonaristas”.
Foto: Lia de Paula/Agência Senado |
“O que mais me chamou a
atenção foi sua defesa incondicional de princípios, coisa incomum por aqui”,
diz Schüler. “Quem defende um princípio”, segundo Glenn, “não está do lado de
nenhuma facção, à esquerda ou à direita”.
O cientista político lembra
que, depois de defender a liberdade de expressão para parlamentares,
jornalistas e influenciadores “de direita”, Glenn foi tachado de
“bolsonarista”. “O não argumento que nosso pensamento preguiçoso lança contra
qualquer um que arrisque divergir da tribo dominante”, observou. “Aqui, pelos
trópicos, parece difícil aceitar a ideia simples de que se pode discordar 100%
de uma opinião, mas defender ‘até a morte’ seu direito à expressão.”
No texto, Schüler cita outro argumento utilizado pelos intolerantes: Glenn defende “prerrogativas norte-americanas”, e as leis daquele país não se aplicam ao Brasil. “Também aí há um erro”, constatou. “Quem disse que nossa Constituição autoriza a censura prévia? Ou deixa de proteger o devido processo, o contraditório, que inclui o acesso de advogados aos autos de um processo? Ou quem sabe a inviolabilidade de nossos representantes, inscrita em seu Art. 53? Mais do que brasileiras, são prerrogativas civilizatórias, próprias de qualquer república digna desse nome.”
Mas não para aí. Há ainda um
terceiro truque, segundo o colunista da revista Veja, que consiste
em associar quem defende a liberdade de expressão ao apoio a “esses vândalos”.
Leia-se: aos manifestantes que cometeram atos de vandalismo em Brasília. “É a
lógica do tudo ou nada”, afirmou. “Ou se defende, acriticamente, qualquer
medida repressiva do Estado, ou se está deixando de ‘defender a democracia’.
Lógica absurda. É evidente que se deve diferenciar quem usa da violência,
bloqueando estradas ou invadindo um palácio, de quem emite meramente uma
opinião, desprezível que seja, nas redes sociais. Diferenciar essas coisas é
parte essencial, em última instância, da fronteira que separa um regime
autoritário de uma democracia liberal.”
Para Schüler, a visão de Glenn
“se situa em uma faixa estreita, nos dias atuais, a um só tempo crítica das
visões autoritárias que brotam na sociedade e do autoritarismo que vem do
Estado, via infração a direitos individuais”. Isso terminaria por
“retroalimentar o radicalismo político”.
O colunista menciona a lista
de políticos e influenciadores banidos das redes sociais no Brasil. “Um deles
foi Nikolas Ferreira, o jovem deputado mais votado do país”, lembrou. “Qual foi
exatamente seu crime? Ele pediu que as investigações dos atos de janeiro
envolvessem também autoridades federais. Dançou. Um deputado deveria ser
inviolável em ‘palavras, opiniões e votos’, como diz a Constituição, para,
inclusive, pedir as investigações que julgar devidas. No Brasil de hoje, foi
calado. A maioria ri. Outros dão de ombros. Ainda outros andam com medo. Essas
coisas surgem sempre quando aceitamos que cabe ao Estado decidir sobre a
verdade, quando entra em cena o delito de opinião e quando admitimos que os
tribunais, que deveriam preservar a lei, ajam com ‘ousadia’ diante da lei, como
leio por aí.”
Conforme Schüler, o respeito
aos princípios universais foi crucial no nascimento da ideia moderna de
tolerância e dos direitos individuais. A história do filósofo Voltaire e o
martírio de Jean Calas, comerciante de Toulouse acusado de matar o próprio
filho, em 1761, mostram isso. “Calas tinha 63 anos e era um protestante numa
cidade marcada pelo fanatismo católico”, contou o colunista. “A acusação era
frágil, mas ele foi condenado ao suplício e à morte. Cada parte de seu corpo
foi quebrada. Enfiaram um funil na sua garganta, por onde despejaram 17 litros
de água. Depois o colocaram na roda, onde foi esticado até arrebentar. A tudo
ele suportou repetindo que era inocente. Sua obstinação tocou a alma de
Voltaire. Ele viu naquilo toda a barbárie do século, mas também a chama da
dignidade individual. Convencido de sua inocência, torna para si uma questão de
honra a reabilitação da memória de Jean Calas.”
O que encanta nesse episódio
trágico, diz o cientista político, é a atitude “absurda” de Voltaire. “Voltaire
era um homem consagrado, havia acabado de publicar o Cândido, e andava prestes
a inaugurar seu Castelo de Ferney. E nem sequer conhecia Jean Calas. Apesar
disso, por dois anos, se dedicou à reabertura do caso simplesmente em
obediência a um princípio. Por fim, conseguiu. Em março de 1765, três anos
depois do suplício, os juízes de Paris revisaram a condenação, e a viúva de
Calas foi recebida em Versalhes por Luis XV. Na sequência, Voltaire escreve seu
Tratado sobre a Tolerância. Afirma princípios simples e até hoje válidos: a
ideia de que todos merecem um julgamento justo, que a tolerância é a via
possível para vivermos em paz e prosperar. E que é preciso superar o fanatismo,
essa ‘sombria superstição que induz as almas fracas a imputar crimes a qualquer
um que não pense como elas’.”
Schüler acredita que a
política substitui a religião, como a “paixão pública”. “A mensagem de Voltaire
permanece: abrindo mão de certos princípios, só nos resta o universo incerto
dos instintos, de nossas preferências e juízos precários sobre o bem e o mal.
Se no Brasil de hoje achincalhamos um jornalista por defender a liberdade de
expressão e o direito ao devido processo, é porque estamos com um problema”,
observou. “Se aceitamos passivamente a volta da censura prévia, o banimento de
jornalistas e deputados da internet, ou coisas ainda piores, como o bloqueio de
contas bancárias, pressão econômica, censura a emissoras e mesmo a prisão por
delito de opinião, é porque estamos com um problema bastante complicado. Algo
que não será resolvido por uma razão instrumental, que diz ‘é preciso esticar
um pouco a Constituição porque há um inimigo a ser derrotado’.”
O cientista político conclui o
texto dizendo que “lembrar de Voltaire é fazer o percurso inverso, que nos
vincula a certos princípios feitos precisamente para frear nossos instintos”.
Segundo Schüler, “princípios que não são ‘norte-americanos’, mas que estão
todos lá, na Constituição e nas leis brasileiras, cujo respeito é a única via
possível para reconciliar este país que por vezes mal conseguimos reconhecer”.
Título e Texto: Redação,
Revista Oeste, 22-1-2023, 12h31
Lula quer tirar ‘bolsonaristas’ do governo
Lula quer alimentar crise com o Exército, afirma Mourão
Glenn Greenwald e Celso Rocha de Barros debatem sobre Liberdade de Expressão
O perigo da Direita permitida
O Brasil vai querer paz
Que parágrafo interessante – e lindo!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-