terça-feira, 31 de janeiro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Pistola de grilos

Aparecido Raimundo de Souza


DONA GLÓRIA
bate desesperadamente à porta do quarto de seu filho Fumarato. Não é a primeira vez que tal coisa acontece. Como sempre, fica preocupada, quando o seu menino de apenas doze anos se isola. Impaciente, a pobre mulher está temerosa. Grita para ser ouvida: 
— O que faz aí trancado de novo? 
Fumarato em meio à desordem que reina lá dentro, responde, igualmente, aos berros: 
— Estou brincando, mãe. 
— Brincando com quem, ou com quê? 
— Sozinho. 
— Que barulho estranho é esse? 
— Não estou ouvindo nada.

À medida que mantém o diálogo, dona Glória insiste com as pancadas. As palmas de suas mãos incham e um vermelhidão muito forte toma o lugar da cor natural: 
— Destranque e venha lanchar. Já passam das três da tarde. Cetotifeno, seu coleguinha, se abancou (1) à mesa e lhe espera para o café.
— Já vou, mãe, já vou...
A zoada interior persiste veloz, como um tufão que se realça. Parece um ritual satânico. A impressão de dona Glória é a de que alguma coisa sofra horrores nas peraltices do guri. O que ela ouve, se assemelha a grunhidos, urros e relinchos. Tudo misturado numa forte agonia, como se um animal indefeso tivesse sendo barbaramente espancado.

Mas impossível se pensar em tal hipótese. Os cômodos de Fumarato se situam no décimo oitavo andar de um prédio de apartamentos. A janela do garoto não tem acesso à varanda, tampouco à parapeito. A visão de dentro do quarto media com a de outro edifício, onde, no meio, um fosso enorme divisa a torre da construção vizinha, de forma que, não assiste razão para qualquer pessoa normal aceitar a ideia de que, lá dentro, tenha sido introduzido um animal, qualquer que fosse o seu tamanho. Se por tal via se faz impossível, pelos caminhos legais em vista dos funcionários, menos ainda. Além do condomínio não permitir, ela ou a empregada, ou mesmo o inseparável Cetotifeno, teriam sido alertados, e, obviamente, alguém da portaria daria o alerta e brecado. Sem falar nas câmeras de monitoramento. Todavia, alguma coisa diferente se metera lá dentro daquele espaço e não havia mais nenhuma sombra de indecisão a respeito.

As horas passam. Os estrondos produzidos seguem firmes e fortes. Não deixam margens às dúvidas. Dona Glória, por sua vez, se desfaz da ideia de que não ficou louca de repente. Dorinha e Cetotifeno, igualmente, ouvem os mesmos urros e chiados, sem, no entanto, identificarem a sua possível origem. O que mais intriga: Fumarato não possuí computador, nem aparelho de rádio ou TV. Aqueles barulhos inexplicáveis não afluíam de nenhum jogo de videogame caseiro conhecido, menos ainda de aparelhos eletroeletrônicos supostamente ligados. A mãe, aos prantos, não se conforma. Chora e soluça, soluça e chora, insistente:
— Abra Fumarato, pelo amor de Deus.
— Calma mãe!
— Cetotifeno está aqui. O café foi servido. Dorinha trouxe pão quente e o queijo que você gosta. Venha, filho. Está me ouvindo?

Ouvindo, Fumarato certamente está. E bem. No entanto, alguma coisa desproporcionada e fora dos padrões normais rola à solta. A voz do guri, ora sobressai aos relinchos, ora some de vez. Às vezes, a balbúrdia aumenta de intensidade; noutras cessa misteriosamente. Dona Glória, porém, incansável e resoluta, finca os pés; não arreda; não desiste. Permanece junto à entrada do quadrado do filho, como se estivesse cosida à parede:
— Filho, pare com essa bagunça.
— Que saco, mãe! Vê se me erra.
— Cetotifeno vai subir para a casa dele. Não faça desfeita ao seu colega...
— Não faça o que, mãe?
— Desfeita, filho, desfeita.

Dona Glória, de repente, se afasta tolhida por uma aljofrada (2) de suor seguida de forte indisposição. Sem mencionar a dor de cabeça que a invade. Pede socorro à empregada, sem esmiuçar os comentos malévolos que assaltam seu espírito. Dorinha acode solícita e volta à carga, pancadeando (3) a porta com mais intensidade:
— Pó, qual é, mãe. Já vou...
— Não é sua mãe, sou eu, Dorinha.
— Me esquece, cara. Vá lavar as louças, colocar as roupas na máquina, dar comida ao cachorro.

Dorinha não se faz de rogada:
— Que diabos acontece aí, menino?
— O que você acha? — responde o piá numa censura benévola?
— Se eu soubesse alguma coisa, ou se achasse, não lhe perguntaria. Vamos, fale comigo. O que se passa?
Fumarato, finalmente, solta a língua:
— Dorinha, se eu falar, tenho certeza que você não vai acreditar...
— No que não vou acreditar? Ao menos tente.

O garoto, então, se abre com a serviçal:
— Dorinha, pintou aqui no meu quarto uma mula...
— Uma o quê?
— Uma mula.
— Faça me rir, seu boboca. Saia para o café. Deixe de pilhérias. Você está bem grandinho para certas criancices. Vamos, abra...
— Assim que acabar de dar cabo dela, Dorinha, eu prometo que me destranco...
—... Só falta você me convencer de que a mula que está aí dentro é preta e sem cabeça...

Fumarato, se espanta. Se mostra confuso:
—... Pera aí, Dorinha! Como sabe?!
— Adivinhei. Agora pule fora. Venha tomar café com seu amigo. Lembre-se: tenho mais o que fazer. E ainda preciso limpar seu quarto — completa numa preocupação dissimulada.
Dona Glória retorna e se prostra de novo, à porta. Junto dela, Cetotifeno:
— Filho, se não sair daí, interfonarei para à portaria.
Faz um gesto à Cetotifeno, para que a ajude e intervenha. Cochicha algumas palavras no ouvido do moleque. O pirralho aquiesce e repete a história de providenciar reforços:
— Fumarato, a sua mãe vai mandar a galera do condomínio subir. Se eu fosse você cairia fora agora. Abre, ô Mané! Vou rachar no trecho. “Qualé” a sua, mano?!

— Confirmei para a Dorinha e vou repetir pra você o que disse a ela. Assim que eu acabar com a mula preta sem cabeça que está aqui comigo, libero geral...
— Pirou, seu idiota?
— Não vééi...
As tentativas para que o menino aquiesça restam, por fim, infrutíferas. A contenda, lá dentro, segue indiferente às súplicas dos mais chegados. Sem outras alternativas, a administração é acionada. O subsíndico chega acompanhado com dois funcionários. Os petitórios para que Fumarato deixe o quarto são redobrados numa derradeira tentativa. Nada. Dona Glória decide, então, pelo arrombamento. A ninguém mais interessa aquele estado de intranquilidade.

O pessoal, sem mais delongas, entra em ação e põe a porta ao chão. A cena que surge, entrementes, é violenta e brutal. Como um tiro no escuro, à sanha de um atirador inverossímil, o que se vê é assas (4) incrédulo e chocante. Fumarato está todo coberto de sangue, montado, a cavaleiro, sobre o lombo de um bicho preto e enorme que jaz estirado. Nas mãos, uma zagaia (5) de gancho dos tempos antigos, usada pelos sertanistas para caçar onças e outros animais. Em volta, para o lado do banheiro, sangue por todos os lados respingados pelas paredes e móveis. Uma mancha se estende pelo chão e se transforma num desenho de dimensões grotescas escorrendo para o lado onde fica a cama.

A cortina é aberta e a janela escancarada. Um “Meu Deus, que horror!”, em uníssono, se faz ouvir, em meio a uma onda de terror e incredulidade que toma conta do semblante de cada um. A galera, bestializada (6) pelo negror do quadro exposto, petrifica as feições. Dona Glória, contrafeita, não aguenta a cena forte com a qual se depara e desmaia. Dorinha lhe segue no vácuo, mas, antes, vomita as tripas. Cetotifeno sai correndo em desabalada carreira. O pessoal, espremido pela raridade do inusitado, à guisa de socorro, acode com álcool e massagens. Uma ambulância é solicitada. Fumarato, meio que petrificado, a alma a lhe escorrer pelas mãos, o coração em frangalhos e os olhos em arregalos (7) descomedidos, realmente havia acabado de matar uma mula. Uma mula preta enorme. E sem cabeça.

Notas de rodapé:
1) Abancou – Se sentou, se pôs à mesa.
2) Aljofrada – Ornada com pequenos enfeites que se assemelham a gotículas de água.
3) Pancadeando – Batendo em alguma coisa com estrondo, ou estardalhaço.
4) Assas – Em quantidade bastante e suficiente.
5) Zagaia – Espécie de lança curta que pode ser usada para dar cabo de animais ferozes.
6) Bestializado – Surpresada, chocada.
7) Arregalos – As vistas desmesuradamente abertas, ou escancaradas.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Santo Eduardo, Campo dos Goytacazes, Rio de Janeiro, 31-1-2023 

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