domingo, 22 de janeiro de 2023

A disseminação da dúvida

Theodore Dalrymple

No passado essas intrincadas discussões sobre a natureza, a extensão e a validade do conhecimento humano estavam confinadas a um pequeno corpo de filósofos competentes, os quais viviam em torres de marfim e tanto não podiam quanto não queriam que os seus argumentos fossem conhecidos do grande público. Até não muito tempo atrás, só uma pequena porcentagem da população frequentava universidades, e, dessa pequena porcentagem, apenas um número diminuto se preocupava com a filosofia em geral, e com epistemologia em particular. Mesmo que os filósofos fossem absolutamente sérios em seus trabalhos, a filosofia era tida como um jogo, um passatempo, ou mesmo um hobby no que se referia ao resto da sociedade.

Entretanto, no Ocidente, houve grande aumento do número de pessoas que passaram pela educação universitária, o terceiro grau, especialmente na área de humanidades. Na Grã-Bretanha, por exemplo, é desejo do governo que metade da população frequente a universidade, e, é claro, faz parte da natureza das modernas burocracias que, de uma forma ou de outra, elas atinjam os objetivos estabelecidos por seus mentores políticos, mesmo que (ou sempre) à custa do propósito por trás desses objetivos.

Na França, onde passar no vestibular (baccalaureat) sempre permitiu ao estudante ingressar no ensino superior, a proporção da população que passa nessa admissão nacional aumentou de 10%, quando minha esposa o prestou, para 80% hoje em dia. Isso poderia ser visto como um sinal admirável no progresso da educação se, nesse meio-tempo, o padrão solicitado para passar no exame tivesse permanecido constante; mas a evidência é bastante conclusiva de que o padrão caiu drasticamente.

É verdade que diferentes condições de vida implicam novas formas de ensinamento que as crianças precisam receber, distintas dos antigos formatos, o que torna uma comparação direta difícil ou complicada, mas não é fácil crer que as condições modernas tornem tanto o aprendizado do ferramental básico da língua quanto o dos números menos desejáveis ou menos importantes do que um dia já foram.1

O fato é que, de formas inédita, grande quantidade de pessoas que, no passado, teria sofrido pouca exposição aos argumentos filosóficos se vê, agora, exposta ao relativismo epistemológico. Está provavelmente certo quando se diz que, na medida em que crescem em quantidade, decresce sua faculdade crítica. Portanto, essas pessoas ficam suscetíveis a aceitar a autoridade do discurso que diz não haver algo como a verdade, que tudo depende de um ponto de vista inicial, e que uma opinião é tão “váçida” quanto qualquer outra (o dúbio termo “válido” já quase substituiu a palavra “verdade”). Elas aceitam, como autoridade, que não exista autoridade alguma, exceto, é claro, o que elas pensam, e que é tão bom quanto o que pensa qualquer outra pessoa. O peso intelectual é substituído pelo egoísmo.

Essa não é uma boa posição da qual se possa resistir às alegações de outros baseados em princípios. Expressar incerteza diante do direito de alguém de exigir qualquer coisa dos outros será entremeado por rajadas de sentimento ferido, que os direitos desse alguém não estão sendo respeitados, mas isso não durará muito e tampouco conduzirá a qualquer solução de longo prazo para qualquer problema. Uma apatia disfarçada de tolerância será alternada por breves períodos de reação violenta.

1 Um acadêmico sênior no Imperial College, uma das mais importantes instituições britânicas de ensino científico, queixou-se recentemente de que os alunos britânicos tinham um inglês escrito pior do que o dos estrangeiros, cujo inglês era para eles o segundo ou até mesmo o terceiro idioma.

Título e Texto: Theodore Dalrymple, in “A nova síndrome de Vichy – Por que os intelectuais europeus se rendem ao barbarismo”, É realizações Editora, páginas 72 e 73
Digitação: JP, 22-1-2023

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