A questão da beleza versus feiura é algo que transcende divisões políticas, e é possível até afirmar que ela é mais importante, no longo prazo, do que essas divisões
Theodore Dalrymple
Quando a Brasil Paralelo me convidou para participar de uma série que estava sendo criada sobre o fim da beleza, aceitei de imediato. Não porque conheço alguma coisa sobre a Brasil Paralelo, mas porque achei que esse era um assunto da maior importância, levado em consideração com pouca frequência. O mundo, ao que me parece, foi terrivelmente enfeado nas últimas décadas, a um ritmo acelerado, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. E isso vai continuar envenenando a vida das pessoas no futuro.
Vista aérea da Basílica de Sacre-Cœur de Montmartre, em Paris, Foto Davit Khutsishvili/Shutterstock |
Não estou dizendo que o mundo
está pior do que era em todos os aspectos: isso seria ridículo. Até certo
ponto, sem dúvida, um grau de “enfeamento” era inevitável, com o rápido aumento
da população e o desenvolvimento de uma sociedade de consumo. Não podemos
consumir sem produzir e distribuir, e nem a produção nem a distribuição em
massa costumam ser bonitas em si. Não são muitos de nós que estão dispostos a
abrir mão dos altos níveis de consumo como um todo.
No fim das contas, não posso
deixar de me perguntar se o mundo precisa ser tão feio quanto o deixamos. As
pessoas que chegam a Paris pelo Aeroporto Charles de Gaulle, por exemplo, mal
conseguem acreditar, enquanto vão de trem ou táxi até o centro da Cidade Luz.
Na metrópole supostamente mais linda do mundo, elas são recebidas pelo que a
Unicef deveria declarar um patrimônio histórico da feiura feito pela humanidade.
No centro da cidade em si, praticamente todo edifício construído de 1945 em
diante prejudica a beleza de seus arredores.
O que é verdade para Paris é
verdade para grande parte dos outros lugares. É como se tivesse havido uma
espécie de determinação de enfear do mundo, de modo que nenhuma parte pudesse
escapar. Se tivesse havido uma conspiração para deixar o mundo mais feio, teria
sido a conspiração mais bem-sucedida da história. É como se alguém tivesse
decidido, a partir de uma ideia de justiça, que, se nem todo mundo podia viver
na beleza, ninguém deveria viver na beleza. A meticulosidade do “enfeamento” me
impressiona: na Inglaterra, por exemplo, até mesmo os menores e mais remotos
vilarejos de grande beleza foram acrescidos de ou prejudicados por edifícios
que são como cicatrizes inflamadas que não estão sarando.
A beleza enriquece e
aprimora a vida
A predominância da feiura está refletida nas pessoas, que precisam viver em meio a ela durante toda a vida. Só os muito ricos conseguem escapar agora. Claro, faz tempo que a feiura existe, mas pelo menos antes ela existia em uma escala humana. Seja como for, as pessoas na Inglaterra reagem tornando-se elas mesmas feias, em suas roupas, em sua automutilação, em seus modos, até mesmo em sua música, em sua completa ausência de dignidade pessoal (que não é incompatível, claro, com a presunção). Existe uma feiura militante, não uma matéria-prima da natureza. Até mesmo as vozes nos sistemas de anúncio público da Inglaterra agora são feias, como se qualquer refinamento na dicção ou beleza na voz fosse uma afronta à população.
A feiura, claro, é
democrática, no sentido se estar ao alcance de qualquer um. Além do mais, não é
preciso nenhum empenho para alcançá-la, o que é até certo ponto relaxante. Ela
não faz exigências, seja de esforço, seja de apreciação. E nos permite seguir
desimpedidos com nossa vida, cujo principal objetivo é nos manter cada vez mais
entretidos de modo privado. Se você olhar para imagens das pessoas nas ruas nos
anos 1930, digamos, é óbvio que, não importam as dificuldades, elas se
esforçavam para parecer elegantes aos olhos dos demais. Agora, na maior parte
dos casos, as pessoas vestem qualquer coisa, e, nas partes mais “avançadas” da
sociedade, as pessoas não se arrumam nem para funerais. Claro, em condições de
feiura geral avançada, fazer um esforço individual parece cada vez mais inútil.
Uma pessoa pareceria uma formiga que tentou se distinguir das outras formigas
no formigueiro.
Não espero que todo mundo
concorde comigo. É até possível que eu esteja totalmente enganado. Mas, de todo
jeito, o tema da beleza (e seu oposto) é obviamente importante de discutir,
algo que raramente acontece. É como se estivéssemos ocupados demais com outras
coisas mais urgentes para gastar tempo com isso, como se a beleza fosse apenas
algo extra e opcional na vida. Como a luz do carro do meu vizinho, que faz
brilhar a palavra “Porsche” no chão quando ele abre a porta à noite. É
totalmente possível viver sem isso.
Mas a beleza enriquece e
aprimora a vida, assim como a feiura a prejudica e envenena. Isso é tão óbvio
que eu deveria sentir vergonha de dizer, se não fosse o caso de que até mesmo
tocar no assunto irrita as pessoas que se consideram, de alguma forma, progressistas.
Neste momento, eu deveria comentar que, no passado, assim como o poeta inglês
William Blake, essas pessoas teriam usado a predominância da feiura como um
motivo para uma reforma, não como um argumento para a indiferença ou mais
degradação.
A verdade vai aparecer
Eu teria dito o que disse nas
filmagens feitas pela Brasil Paralelo, não importa quem tivesse me feito as
mesmas perguntas. A questão da beleza versus feiura é algo que
transcende divisões políticas, e é possível até afirmar que ela é mais
importante, no longo prazo, do que essas divisões. Afinal, nossos descendentes
terão, em grande parte, de aguentar nosso legado material e estético. A menos
que ocorra um holocausto nuclear, o que significaria que, caso sobrevivêssemos,
seria preciso começar tudo de novo.
No entanto, pelo que entendi,
alguns esforços foram feitos em alguns cantos do Brasil para impedir que esse
material seja exibido. Como se ele estivesse propondo uma doutrina perigosa,
por exemplo, que devemos voltar aos métodos médicos e cirúrgicos do século 16.
Mas, mesmo que esses filmes propusessem essa doutrina, não haveria
justificativa para impedir sua exibição. A menos que você acredite que seus
concidadãos são idiotas (e que você é muito mais inteligente que eles).
Costumávamos valorizar o
controle do comportamento e a liberdade de opinião. E passamos a valorizar a
liberdade de comportamento e o controle da opinião. Mas ainda sou
suficientemente otimista em acreditar que, como dizemos em inglês, a verdade
vai aparecer. E a verdade é que a beleza é importante, e nós enfeamos o mundo a
um grau bem desnecessário.
Título e Texto: Theodore
Dalrymple, revista Oeste, nº 103, 11-3-2022
Relacionado:
Assista ao documentário ‘O Fim da Beleza’, que a esquerda quer censurar
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