terça-feira, 29 de março de 2022

[Aparecido rasga o verbo] O Pernilongo e o Caçador de Antropolatrias

Aparecido Raimundo de Souza

O PERNILONGO entrou, de repente, quarto à dentro e começou a perturbar a paz, o embrandecimento e o sossego do Arquimedes. O rapaz tentava conciliar o sono ao lado da sua mulher, a Zoroastra. Qual o quê! O infeliz zumbia daqui, tinia dali, incessante, pertinaz, diligente e esforçado. A tal ponto que não mais aguentando a balbúrdia, fez o sujeito irritado e abespinhado se levantar brabo e trepado nas tamancas: 
— Tenho que matar esse desgraçado...

Apanhou na cesta de roupas sujas uma camisa da filha com as iniciais do BBB-22 e ficou à cata do inseto. Avistou o safado num espaço ermo da parede acima da porta: 
— Chegou a sua hora, irmão... 
Tentou dar umas camisadas ao acaso. Como nascera quase um anão e meio, não conseguiu alcançar o objetivo. Para não acordar a esposa, que dava aulas de matemática em duas escolas diferentes, se dirigiu, pé ante pé à cozinha. 

Se armou de uma vassoura de piaçava e voltou ao ataque. Vinha confiante. Daria cabo do ilustre perturbador. Entretanto, um imprevisto derrubou, pelo chão de ladrilhos de pisos brancos, as suas ideias assassinas de finalizar com às cantorias daquele membro irritante da tradicional família Díptera. Nessas alturas, o trocinho havia mudado de lugar. Parecia adivinhar seus pensamentos marotos. 

O belo espécime se via pousado tranquilamente no pé da Zoroastra sugando o seu sangue. A mulher, por assim, entregue aos mimos de Morfeu, pouco se lixava. Nem aí com as picadas. Arquimedes, por um segundo esqueceu a vassoura e partiu para o abraço, resgatando, de volta, a camisa da sua única herdeira. Mal chegou perto, o espertalhão acenou um tchauzinho, deu uma piscadela de olhos e tornou a voar. Arquimedes não entregou os pontos. 

Pelo contrário. Mais abrasado, e, igualmente descontrolado que poste de luz em busca de um cachorro para fazer as suas necessidades fisiológicas, investiu para um novo ataque: 
— Te pego, filho de uma boa mãe. Espera! 
Os esforços empregados entretanto, resultaram em vão. Depois de muitas tentativas infrutíferas, por fim desistiu. Apagou o abajur e voltou à cama. Zoroastra, deu uma leve virada para o canto, resmungando palavras ininteligíveis. 

Não demorou meia hora o cantor incomodante voltou a surfar no ouvido do Arquimedes: 
— “Saia do meu caminho —, eu prefiro andar sozinho —, deixa que eu decida a minha vida...”. 
— Maldito! 
Ousou dar um tapa no meio da escuridão reinante. Acabou acertando o nariz da esposa: 
— Merda... 

Outra vez se pôs de pé. Desta feita, ou acabava com o chato representante da consanguinidade dos Culicidae ou não se chamava Arquimedes, com ”A” maiúsculo. Lembrou na última vez em que fora ao supermercado. Havia comprado umas latas de inseticidas e repelentes os mais diversos que anunciavam ser tiro e queda à certos tipos de bichos, como baratas, pulgas, pernilongos, formigas, sogras, vizinhos insípidos e cobradores maçantes e etc. etc. etc... 

Com certeza aquele problema logo terminaria resolvido. Novo empecilho: onde mesmo que a Zoroastra guardava as tais embalagens? Numa prateleira sob a pia da cozinha? Foi até lá. Fuçou tudo. Nada! Até dentro da geladeira se prestou a dar uma espiada. Seguidamente zanzou pelos móveis que guarneciam os quartos, tanto do casal, dos hóspedes como o da sua mocinha adolescente. Absolutamente nem sinal. Talvez no banheiro. Idem. Nada por lá. O lavabo da empregada. Claro! Burro... 

Havia um armário onde se guardavam quinquilharias. Partiu para conferir. Apolônia, a cuidadora oficial dos afazeres domésticos, crescia no alvor de uma jovem na esteira dos vinte. Inocente, a dondoca dormia completamente nua, como uma princesa dos contos de fada. Seu sembrante e tudo mais, se assemelhava ao completo de uma gema, tipo uma santa banhada em ouro, os olhos cálidos, perdidos numa oração silenciosa. Quando Arquimedes escancarou inteiro os aposentos e a luz que vinha filtrada do corredor deu um toque imperceptível na cama onde a guria se fazia em descanso, quase teve um troço. 

A aprazível, de barriga para cima, sinalizava todo o seu poderio de boniteza e enlevo à mostra. Viajava, a incauta, distante e inocente, na letargia cálida dos justos. Arquimedes, num primeiro momento, se beliscou os braços à guisa dos cotovelos: “tudo aquilo assim, aos esbugalhos das suas lascívias carnais?!”. Maridão fiel, nunca havia dado um pulo fora. Jamais! Adultério, nem pensar. Buscou desviar o apetite... impossível. Os vermes dos pecados libidinosos atonaram, e, à cena inesperada, bem ali a dois passos dele, se fez maior. 

Triplicou, inegavelmente falando. Sua carcaça inerteada, de repente, se entregou à espasmos de tremuras, ao tempo de não saber se comia as unhas ou se, cuidadoso, vigiava a porta, temendo o aparecimento repentino da Zoroastra. Se tal ocorresse, seria o fim do seu casamento, sem sombra de dúvidas.
— Valha-me Deus. Isso não podia ter acontecido. Esse vergel de prazeres como água corrente aqui, jogado às traças, os bálsamos cobrindo a fonte selada, e eu, coitado de mim, com aquele tribufu peidando e roncando...
Arquimedes não pensou duas vezes. Não contou até dez. 

O instinto animal falou mais alto transbordando de dentro das suas estripolias enfraquecidas. Aliás, essas traquinagens em vista daquela visão celestial, os lábios entreabertos como fitas de púrpuras, não falou. Gritou, esbravejou, tonitroou. Igual movido por molas invisíveis, o felizardo trancou a porta por dentro. Em passo seguinte, se desfez dos panos. Camiseta de um lado, calção do pijama para outro. Sem delongas, pulou com a sua Torre Eiffel, cuidadoso e polido sobre o corpo dela e se fundiu, num doce empreendimento à escultura magnânima da serviçal. Tão ardorosa se fez a aterrissagem, que ele, senhor absoluto do fenomeno abissal, se esqueceu literalmente do pernilongo que, naquele momento, deveria estar picando a sua metade da maçã, autora de tantos e tantos anos de companheirismo e dedicação.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Interlagos, São Paulo Capital. 29-3-2022

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