terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Parafuso sem porca

Aparecido Raimundo de Souza 

A ÚLTIMA
sexta-feira que passou, realmente não me foi das melhores. Tudo começou com um telefonema idiota que fiz logo depois das dezenove horas, para o apartamento da Silvia, minha nova secretária. Assim que ela atendeu, quase no décimo toque, perguntei, de chofre (1):
— Por que demorou atender?
— Estava no banheiro...
— Posição?
— Até as cinco, quase seis, aqui no banco da praça, de quatro...
— No banco da praça? De quatro? Sua pu...
— Termine o que ia dizer... sua pu... sua pu o quê? conclua...

Engoli em seco antes de escrachar (2) com a safada. Confesso, na hora, fiquei uma arara. Brabo, cuspindo marimbondos. Minha vontade, mandá-la, às favas. Todavia, me contive. Sílvia só tinha quinze dias de escritório. Estava crua em matéria de secretariar um analista de sistemas, com um amontoado de clientes enchendo o saco no balcão, de cinco em cinco minutos, afora as ligações intermináveis. Por outro lado, a melhor parte. Silvia se constituia num pedaço de carne tenra, um filé mignom no capricho que eu precisava, aos poucos, ir temperando ao meu gosto, para... bem, para saborear acompanhado de umas cervejinhas estupidamente geladas.

Contudo, o fato dela estar com outro, no banco, logo no banco, ainda por cima, de quatro..., “não tinha uma posição menos deprimente?”... me deixou exasperado. Refreei a fúria, à custo, e aparentei uma calma inexistente. “Devagar” – dizia meu avô Belarmino –, “devagar, meu filho, se vai ao longe””. Dessa forma, se a minha intenção se resumia em usufruir daquela monumento angelical, ainda que Silvia fosse uma vagabunda – imagine, de quatro, no banco –, precisava ter muita paciência, tato e, claro, fazer o jogo dela sem mostrar meus trunfos escondidos dentro da manga. Entretanto, não deixei de dar uma “lavada”, de leve, um esbregue (3), só para mostrar a minha supremacia chefial.

— Sílvia, é assim que você me agradece?
— Não estou entendendo, seu Marivaldo.
— Como não está entendendo? Arranjo um serviço para você, lhe pago um bom ordenado e você acaba “dando para outro, logo no banco..., ainda por cima, de quatro...?””
— Seu Marivaldo, acho que o senhor está equivocado.
— Equivocado? Então me dê uma boa explicação. O que você fazia, no banco?
— Fui sacar dinheiro para pagar uns boletos que o senhor mandou, lembra? Cheguei lá, enfrentei uma fila que parecia não ter fim...
— Você falou que estava no banco, de quatro...

A radiosa, sem abandonar a postura gentil, explicou:
— Seu Marivaldo, eu estava no banco... cheguei naquela droga, às quatro. Sai do escritório, está lembrado, faltavam dez minutos para a agência encerrar o expediente. Fiquei na fila até cinco e quarenta... fui uma das últimas a deixar a agência. Saiba que só entrei porque minha irmã, a Selma é a gerente. Cheguei em casa agorinha mesmo. Abri a porta e corri para o banheiro... e quando o telefone tocou, eu estava sentada, no vaso, fazendo xixi...
Por um momento fiquei atônito, sem palavras, sem saber, na verdade, o que dizer. Como eu era imbecil. Um tremendo babaca, de carteirinha.

Silvia fez uma pausa e prosseguiu. Havia, agora, um certo fundo de riso meio que maroto na sua voz:
— Quando o senhor mencionou a tal da “posição”, eu procurei ser clara, honesta e objetiva. Não menti: estava no banco, de quatro... ou seja, de quatro da tarde até coisa de uma hora atrás. A que posição, afinal o senhor se referia?
— A posição, ora bolas. A posição... que posição?
— Qual é o sentido de posição para o senhor?
— Silvia, pelo amor de Deus. Não me entenda mal. Nem desvirtue as coisas. Quando perguntei pela posição, fazia menção a saber o local exato onde você se encontrava. Em que parte da cidade andava...

A jovem secretária voltou a sorrir de forma sarcástica:
— Posso saber exatamente o que o senhor entendeu?
— Nada, esquece. Por favor, me perdoe. Foi mal!
— Rachou minha cara. Estou envergonhada?
— Dá para esquecer o ocorrido?
— Se o senhor for leal... quero dizer, se falar a verdade, juro que perdoo. Se não me convencer, peço demissão na segunda-feira, à primeira hora e saio à caçar outro emprego: o que o senhor pensou quando mencionei, no banco, de quatro?
— O que você acha?
— Diga o senhor...

Silvia desta vez foi bem mais cruel e taxativa. Estava séria. Sentia, apesar de estarmos no telefone, a sua respiração pesada:
— Não me responda com outra pergunta. Seja objetivo...
— Que você estava, realmente, no banco, sacando dinheiro para pagar as minhas contas. Não é?
— Sua palavra final?
— Sim...
— Não quer pensar um pouco mais e mudar de opinião?
— Estou sendo sincero, minha linda. Sincero como nunca fui...
— Não acredito em suas palavras. O senhor está de sacanagem comigo.

Depois dessas palavras, adveio um silêncio sepulcral (4) culminando num desfecho inesperado:
— Pois escute o que vou lhe dizer. O senhor acaba de perder a sua bela e fogosa “cachorrinha”. E não se faça de besta. Sei que me acha bela, gostosa e muito, muito fogosa. “Uma linda cachorrinha”. Me descreveu assim para Júlia, a secretária do dentista que trabalha em frente:
— Por que essa atitude justamente agora?
— Calma. Ainda não acabei. O senhor achou, ou melhor, deduziu, quando perguntou pela posição – e eu respondi: no banco, de quatro... o senhor maldosamente concluiu que eu estava como uma égua, fazendo bobices com um sujeito qualquer... admita...
— Silvia, minha linda. Vamos esquecer essa conversa fora de esquadro...

Silvia sorriu triunfante. Sabia que eu estava caidinho por ela. Fez novamente uma breve estancada em nossa prosa, para me deixar ainda mais fora de controle do que parecia. Mandou, então a cartada final:
— Não contente, seu Marivaldo –, só concluindo, me pôs abaixo de uma dessas promíscuas (5) que está acostumado a levar para as suas farras...
— Que loucura, Silvia!
— Por fim, me xingou de puta. “Dando para outro...”.
— De onde você tirou isso tudo?
— De onde? Foram suas palavras, seu Marivaldo. Quer saber de um detalhe? Além do meu telefone estar gravando o que conversamos, tenho um bom par de ouvidos. Leve em conta, outro pormenor: não sou loira.

Macambuziado (6) nessa jornada perigosa, eu me vi completamente fora de mim. Vaguei por devolutos até aquele momento estranhos aos meus passos:
— Silvinha, Silvinha, vamos esquecer esse papo careta.
— Tarde demais. Dei uma chance ao senhor. De sua resposta dependia meu futuro, ou melhor, o nosso futuro. Quem sabe o senhor, com muito jeitinho, com muita picardia, não conseguisse me levar para onde pretendia? O senhor é um pedaço de caminho perigoso, admito, além de bonito, sarado, e... bem... chega de conversa fiada. Boa noite, bons sonhos. Aproveite e medite no que acabou de perder. Vejo o senhor na segunda, logo pela manhã...
Silvia desligou nas minhas barbas. Tentei, vezes seguidas, reatar a conversa, ligando insistentemente, mas ela saiu de cena de uma maneira conclusiva. Tirou do ar o celular e para aumentar meu sofrimento, fez o mesmo com o telefone fixo.

Na segunda feira, me apareceu antes do horário normal do expediente. Radiante, linda, impecável, sedutora como nunca. Uma deusa, em carne e osso. Gritei, mostrando meu contentamento à sua chegada:
— Seja bem vinda...
Ela, porém foi direta, fria e sistematicamente taxativa:
— Olhe, aqui nesse envelope está a minha demissão. Acompanha um pen drive com a nossa derradeira conversa, na sexta. Espero que escute, com carinho. Coloquei também o cartão do meu advogado. Ligue para ele e informe o que tenho a receber...

Sentou no sofá de forma que pude ver o que, desde a primeria vez, desejei pudesse ter ao alcance das minhas doidices tresloucadas.
Sem perder o ardor do afogueamento que emanava de seu âmago, a encantada mandou a pancada final diretamente na minha cabeça:
— Outra coisa, seu Marivaldo. Quase me esquecia de dizer. Espero que me entenda. Estou lhe processando por assédio sexual. Lembra daquela música do Amado Batista?
Ao se pôr em pé, para acabar de vez comigo, abriu diametralmente as pernas, mostrando a cor do pecado que eu almejava cometer umas setenta vezes sete, ou mais:
— Bom começo de semana...
Tão radiante como entrou pela porta, de igual forma virou as costas e saiu.

Ficou, no ar, o seu cheiro de fêmea indomável e o perfume inebriante do seu corpo angelical. De contrapeso, um vazio espesso, abarrotado de tristeza, coberto de nostalgias e infelicidades tomou conta de tudo. Acredito, ainda que dispusesse de um botão de pânico para ser acionado, não conseguira mandar para longe os meus tremeliques e assombramentos. Meu Deus, o que foi que fiz? Dentro da sala imensa, a fragrância afoita de seus cabelos longos me invadiu por inteiro. Perdi o chão. O prumo. Olhei para a janela e dei de frente, com um horizonte incerto que, do nada, se descortinou diante de meus olhos tomados pelo correr das lágrimas em abundância desenfreada.

Notas de rodapé:
1) Chofre – De súbito, de repentino.
2) Escrachar – Desmoralizar, esculhambar.
3) Esbregue – Repreensão ou bronca pesada.
4) Sepulcral – Coisa tumular ou arrepiante.
5) Promíscuas – Criaturas libertinas e vadias.
6) Macambuziado – Sujeito atormentado ou enfastiado com alguma coisa que deu errado.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Santo Eduardo, Campo dos Goytacazes, Rio de Janeiro. 21-2-2023

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