sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

O título é este: que saudade do Bolsonaro!

Paulo Polzonoff Jr.

Comecei a trabalhar na Gazeta do Povo em 2018. Pouco depois, tive a honra de ser convidado a preencher diariamente o espaço de uma coluna. E garanto: tirando um ou outro dia em que eu estava meio borocoxô por causa de circunstâncias da vida, nunca sofri da Síndrome de Falta de Assunto que tanto acomete os cronistas. Pelo contrário, houve dias em que me senti capaz de escrever dois ou três textos sobre os temas em ebulição.

Agora é esse marasmo. Essa pasmaceira. Esse ar de cartório ou repartição pública em fim de expediente. Essas palavras protocolares. Essa impostura toda ensaiadinha. Esse semi-silêncio em tom de ameaça velada. Esse nada que me obriga a escrever uma crônica intitulada “Que saudade do Bolsonaro!” só para animar o pessoal. Principalmente aqueles que não se darão ao trabalho de ir além do título.

Aliás, neste momento eu o convido a admirar um espetáculo ainda mais impressionante do que uma revoada de andorinhas. Diante do título escandaloso, praticamente um insulto, hordas de comentaristas correm para expressar sua repulsa pelo cronista, uns gritando "Perdeu, mané!" e outros apenas grasnando a primeira coisa que lhes vem à mente. Tudo porque foram incapazes de um gesto simples de generosidade: chegar a este parágrafo.

De volta à vaca congelada, porém. Assim tenho passado os dias: à procura de um assunto verdadeiramente digno dessas palavras que tento tratar com o esmero que elas e os leitores, até mesmo os leitores-de-título, merecem. Algo mais interessante do que a indignação óbvia e comum dos que ainda não engoliram essa história de Lula presidente pela terceira vez. Algo mais revelador do que as sucessivas hipocrisias e contradições de petistas. Algo minimamente mais elevado do que as estripulias verbais e jurídicas dos ministros do STF.

Mas dizia eu antes de ser interrompido por mim mesmo que estou até com saudade de Jair Bolsonaro. E estou. Uma saudade que não tem a ver com o cargo nem com a pessoa (ressalva necessária, mas que será sumariamente ignorada; quer apostar?). É uma saudade do personagem que, no cercadinho do Palácio do Planalto, nas lives, nas motociatas e até em pronunciamentos oficiais, era tridimensional, cheio de arestas e reentrâncias, por vezes contraditório & incoerente. Um personagem tão real quanto a política contemporânea permite.

Já Lula é um desses personagens que você aprende a compor numa oficina de literatura qualquer. É bidimensional – como quem sabe quem leu a hagiografia escrita por Fernando Morais. Lula tem uma história retilínea, marcada por reviravoltas nos momentos “certos”, e uma redenção social que não permite leituras ambíguas ou profundas. Ele está mais para personagem de videogame controlado por intelectuais da USP e economistas da Unicamp. É uma mistura enferrujada de Homem de Lata e Frankenstein.

Riobaldo e Macabéa

Não adianta e isso é algo com que até os dois ou três petistas que me leem hão (passa, cachorro!) de concordar: literariamente, Bolsonaro é um personagem muito mais interessante do que Lula. Isto é, para quem gosta de contemplar o ser humano com todas as suas qualidades e defeitos, estes mais abundantes do que aquelas. Bolsonaro é Riobaldo; Lula é, forçando a barra, Macabéa.

O pior é que até cogitei vir aqui para, apesar do título provocativo, exaltar a tranquilidade do governo Lula, interrompida uma vez ou outra por factoides e controvérsias vazias. Mas não dá. Porque sei que por baixo dessa calma superficial borbulham interesses escusos. Ou, como cantava o outro: "dormia/ a nossa pátria mãe tão distraída/ sem perceber que era subtraída/ em tenebrosas transações". Não fosse isso talvez eu pudesse falar de árvores e passarinhos, como Rubem Braga. Ou me debruçar sobre a ira do porteiro, todo preocupado com o mau funcionamento do portão, enquanto fico aqui tentando fomentar debates sobre carnaval, OVNIs e poesia.

Aí é que está. Enquanto Jair Bolsonaro cansava pelo excesso de ruído oriundo (não acredito que acabei de usar “oriundo”, provavelmente a palavra mais feia de toda a língua portuguesa e adjacências) da sua espontaneidade rústica, pouco afeita às nuances necessárias ao sucesso político, Lula cansa pelo silêncio dissimulado, pelos recados dados por meio da imprensa amiga, pelo discurso cheio de método e segundas e terceiras intenções.

E, no entanto, apesar do título provocativo e da saudade pelo personagem que me rendia bons textos, a verdade é que torço para que o Bolsonaro real agora se recolha à sua condição histórica de ex-presidente.

[BATE COM AS MÃOS NAS COXAS E SE LEVANTA] O papo está bom, mas tenho que ir. Obrigado, comadre. Obrigado, compadre. Tudo bem, se você insiste eu levo um pedacinho desse bolo. O de chocolate, não o de milho. Chega! É muito. A Dani vai gostar. Tenho que ir. Abre a porta para eu voltar mais vezes. [NA PORTA] Ainda preciso pensar no tema da crônica de hoje e, olha aí, a noite caiu e a gente nem percebeu. Não dá para ficar mesmo. Eu levanto cedo. Me acostumei. Agora deixa eu correr porque acho que esqueci a Catota presa dentro do armário [SAI].

Título e Texto: Paulo Polzonoff Jr., Gazeta do Povo, 16-2-2023, 6h46

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