Paulo Polzonoff Jr.
Comecei a trabalhar na Gazeta do Povo em 2018. Pouco depois, tive a honra de ser convidado a preencher diariamente o espaço de uma coluna. E garanto: tirando um ou outro dia em que eu estava meio borocoxô por causa de circunstâncias da vida, nunca sofri da Síndrome de Falta de Assunto que tanto acomete os cronistas. Pelo contrário, houve dias em que me senti capaz de escrever dois ou três textos sobre os temas em ebulição.
Agora é esse marasmo. Essa
pasmaceira. Esse ar de cartório ou repartição pública em fim de expediente.
Essas palavras protocolares. Essa impostura toda ensaiadinha. Esse
semi-silêncio em tom de ameaça velada. Esse nada que me obriga a
escrever uma crônica intitulada “Que saudade do Bolsonaro!” só para animar o
pessoal. Principalmente aqueles que não se darão ao trabalho de ir além do
título.
Aliás, neste momento eu o
convido a admirar um espetáculo ainda mais impressionante do que uma revoada de
andorinhas. Diante do título escandaloso, praticamente um insulto, hordas de
comentaristas correm para expressar sua repulsa pelo cronista, uns gritando
"Perdeu, mané!" e outros apenas grasnando a primeira coisa que lhes
vem à mente. Tudo porque foram incapazes de um gesto simples de generosidade:
chegar a este parágrafo.
De volta à vaca congelada,
porém. Assim tenho passado os dias: à procura de um assunto verdadeiramente
digno dessas palavras que tento tratar com o esmero que elas e os leitores, até
mesmo os leitores-de-título, merecem. Algo mais interessante do que a indignação
óbvia e comum dos que ainda não engoliram essa história de Lula presidente pela
terceira vez. Algo mais revelador do que as sucessivas hipocrisias e
contradições de petistas. Algo minimamente mais elevado do que as estripulias
verbais e jurídicas dos ministros do STF.
Mas dizia eu antes de ser interrompido por mim mesmo que estou até com saudade de Jair Bolsonaro. E estou. Uma saudade que não tem a ver com o cargo nem com a pessoa (ressalva necessária, mas que será sumariamente ignorada; quer apostar?). É uma saudade do personagem que, no cercadinho do Palácio do Planalto, nas lives, nas motociatas e até em pronunciamentos oficiais, era tridimensional, cheio de arestas e reentrâncias, por vezes contraditório & incoerente. Um personagem tão real quanto a política contemporânea permite.
Já Lula é um desses
personagens que você aprende a compor numa oficina de literatura qualquer. É
bidimensional – como quem sabe quem leu a hagiografia escrita por Fernando
Morais. Lula tem uma história retilínea, marcada por reviravoltas nos momentos
“certos”, e uma redenção social que não permite leituras ambíguas ou profundas.
Ele está mais para personagem de videogame controlado por intelectuais da USP e
economistas da Unicamp. É uma mistura enferrujada de Homem de Lata e
Frankenstein.
Riobaldo e Macabéa
Não adianta e isso é algo com
que até os dois ou três petistas que me leem hão (passa, cachorro!) de
concordar: literariamente, Bolsonaro é um personagem muito mais interessante do
que Lula. Isto é, para quem gosta de contemplar o ser humano com todas as suas
qualidades e defeitos, estes mais abundantes do que aquelas. Bolsonaro é
Riobaldo; Lula é, forçando a barra, Macabéa.
O pior é que até cogitei vir
aqui para, apesar do título provocativo, exaltar a tranquilidade do governo
Lula, interrompida uma vez ou outra por factoides e controvérsias vazias. Mas
não dá. Porque sei que por baixo dessa calma superficial borbulham interesses
escusos. Ou, como cantava o outro: "dormia/ a nossa pátria mãe tão
distraída/ sem perceber que era subtraída/ em tenebrosas transações". Não
fosse isso talvez eu pudesse falar de árvores e passarinhos, como Rubem Braga.
Ou me debruçar sobre a ira do porteiro, todo preocupado com o mau funcionamento
do portão, enquanto fico aqui tentando fomentar debates sobre carnaval, OVNIs e
poesia.
Aí é que está. Enquanto Jair
Bolsonaro cansava pelo excesso de ruído oriundo (não acredito que acabei de
usar “oriundo”, provavelmente a palavra mais feia de toda a língua portuguesa e
adjacências) da sua espontaneidade rústica, pouco afeita às nuances necessárias
ao sucesso político, Lula cansa pelo silêncio dissimulado, pelos recados dados
por meio da imprensa amiga, pelo discurso cheio de método e segundas e
terceiras intenções.
E, no entanto, apesar do título
provocativo e da saudade pelo personagem que me rendia bons textos, a verdade é
que torço para que o Bolsonaro real agora se recolha à sua condição histórica
de ex-presidente.
[BATE COM AS MÃOS NAS COXAS E
SE LEVANTA] O papo está bom, mas tenho que ir. Obrigado, comadre. Obrigado,
compadre. Tudo bem, se você insiste eu levo um pedacinho desse bolo. O de
chocolate, não o de milho. Chega! É muito. A Dani vai gostar. Tenho que ir.
Abre a porta para eu voltar mais vezes. [NA PORTA] Ainda preciso pensar no tema
da crônica de hoje e, olha aí, a noite caiu e a gente nem percebeu. Não dá para
ficar mesmo. Eu levanto cedo. Me acostumei. Agora deixa eu correr porque acho
que esqueci a Catota presa dentro do armário [SAI].
Título e Texto: Paulo
Polzonoff Jr., Gazeta do Povo, 16-2-2023, 6h46
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