Os que não se envergonham da palavra e do acontecimento “Descobrimentos”, e consideram que ele merece um museu, devem unir-se e insistir com os poderes públicos para o levar por diante
João Pedro Marques
Aparentemente, os signatários
da carta estão a levar água aos seus dois moinhos. Por quê? Em primeiro lugar,
porque, há cerca de dois meses, Catarina Vaz Pinto [foto], vereadora da Cultura
da Câmara Municipal de Lisboa, veio dar conta da próxima criação, no Campo das Cebolas, de um memorial
destinado a homenagear os africanos que foram escravos de portugueses, o que é
uma boa ideia, acoplado a um Centro Interpretativo da Escravatura – ou seja, um
pré ou minimuseu da escravatura –, o que é uma ideia menos boa, como já
expliquei num artigo anterior, sobretudo se nesse Centro estiverem ativistas
políticos com interpretações pré-fabricados em vez de pessoas que saibam interpretar
e contextualizar historicamente o tráfico transatlântico de escravos e a
escravidão.
Em segundo lugar, porque,
enquanto tudo isso se vai desenvolvendo, não se vê sequer um primeiro esboço,
uma primeira pedra, um primeiro átomo do planeado e prometido Museu dos
Descobrimentos, venha ele a ter essa designação ou outra.
Será que o presidente da Câmara de Lisboa, que o prometeu, e o próprio primeiro-ministro, que confirmou a promessa, se terão encolhido para não desagradar aos signatários da carta aberta, aos acadêmicos que estão contra o projeto e à extrema-esquerda que se agita dentro e fora do PS? Não sei dizer. O que sei é que nunca mais se ouviu falar em Museu dos Descobrimentos.
Ao que parece ficou
adormecido, em ponto-morto ou, pior do que isso, soterrado na inércia ou
paralisia que sempre ataca os políticos portugueses quando começam a mexer em
coisas que fazem ondas.
No entanto, é perfeitamente
incompreensível que um país, que tem uma parte importante da sua história
firmemente ancorada nos tempos da aventura marítima e multicontinental a que
chamamos, de forma mais ou menos rigorosa, a “Era dos Descobrimentos”, se
incline a fazer um Centro Interpretativo sobre escravatura, a parte mais
sombria e horrível do seu contacto com a África e com as Américas, mas se coíba
de tratar, também, da parte luminosa, benevolente e esperançosa da sua expansão
no mundo.
Da única vez que esteve em Portugal, há 17 anos, David Brion Davis, um historiador unanimemente reconhecido como um dos melhores e mais profundos especialistas em história da escravatura, manifestou desejo de ver o traço dos Descobrimentos na cidade de Lisboa. Mostrei-lhe os Jerónimos, a Torre de Belém [foto] e algumas coisa mais, mas ele estranhou que não existisse no país um grande centro ou museu que, de forma estruturada e condensada, tratasse desses acontecimentos tão importantes e tão decisivos na história coletiva do mundo.
João Pedro e David Brion |
Tive dificuldade em
explicar-lhe que muitos dos nossos acadêmicos e políticos têm vergonha do
passado descobridor e expansionista do país. Consideram que ter orgulho nesse
passado é salazarista, retrógado, lusotropicalista e outras superficialidades
equivalentes.
O tempo passou, David Brion
Davis morreu, infelizmente, há cerca de quatro meses, e o museu, cuja
inexistência o surpreendia, ainda está por fazer e, se calhar, assim ficará,
para felicidade da gente que, tendo influência nas atuais soluções governativas
da Câmara de Lisboa e do país, o considera inconveniente e politicamente
incorreto. Ora, não é, a meu ver, aceitável que grupos de pressão inibam ou
impeçam os portugueses, e os lisboetas em particular, de terem um ou vários
espaços museológicos que mostrem ao público residente e a quem nos visita o que
foi a aventura de coragem e de persistência, de abnegação e de benevolência, de
descoberta e de avanço científico e tecnológico que designamos geralmente por
“Descobrimentos”.
Essa aventura teve crueldades,
iniquidades, violências? Teve, como a aventura de todos os outros povos, mesmo
a daqueles que os politicamente corretos, nos seus delírios cor-de-rosa,
fantasiam como irrepreensivelmente pacíficos e altruístas. Nenhum desses
aspectos negativos deve ser rejeitado, ignorado ou escondido num futuro
tratamento museológico do que foi a expansão portuguesa do século XV em diante.
Mas para que se chegue aí,
para que se chegue ao momento de poder mostrar de uma forma enquadrada e
equilibrada o positivo e o negativo, o admirável e o condenável da história da
expansão dos portugueses no mundo, será preciso que os que não se envergonham
da palavra e do acontecimento “Descobrimentos”, e consideram que ele merece um
museu, se unam e insistam com os poderes públicos no sentido de levar esse
empreendimento por diante.
De outro modo, o Museu dos
Descobrimentos ficará para sempre em águas de bacalhau, afogado nos remoinhos
da eterna culpa do homem branco.
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