Algumas correntes acham que o Homo
sapiens já teve sua chance
Dagomir Marquezi
No seu livro A Ordem das Coisas (1966), o filósofo e psicanalista Michel Foucault lançou a ideia de que a existência dos seres humanos não é eterna nem natural. Na última frase do livro, Foucault diz que “a humanidade será apagada, como um rosto desenhado na areia à beira do mar”.
A impressão que temos é que a
humanidade sempre existiu e que continuará existindo infinitamente. O Homo
sapiens reina sobre o planeta há 2,6 milhões de anos, segundo um
cálculo aproximado da Enciclopédia Britânica. Esse período é
chamado de Antropoceno — que significa “a recente era do homem”. Como a Terra
tem 4,5 bilhões de anos, nossa existência aqui equivale a um instante fugaz,
um flash de tempo. Chegamos, há pouco tempo, e absolutamente
nada garante que duraremos para sempre. Pelo contrário, inventamos e
disseminamos os instrumentos da nossa própria destruição.
Em 1800, havia 1 bilhão de
habitantes na Terra. Hoje, somos 8 bilhões. Segundo estatísticas da ONU,
poderemos chegar a 11 bilhões em 2050 e a 14 bilhões em 2100. São os cálculos
mais alarmistas. Outros revelam que poderemos ter uma reversão desse
crescimento, caindo para 5 bilhões em 2100.
No fundo, ninguém tem a mínima
ideia do que o futuro nos reserva. Temos o presente. Segundo a Britânica,
um quinto da superfície da Terra é usado para a agricultura. Um décimo dessa
superfície está transformado em áreas urbanas. E os oceanos estão sendo
submetidos a um processo predatório fora de qualquer controle.
Para onde estamos indo? Seguiremos firmes no propósito de alimentar e cuidar de bilhões e bilhões de seres humanos, não importa o que seja necessário para isso? Viveremos permanentemente ameaçados por armas químicas e biológicas que podem exterminar a vida humana em algumas poucas semanas? Temos o direito ético de acabar com a vida na Terra — vida essa que não criamos — com uma chuva de armas nucleares disparadas num momento de crise?
“O fim de todos os nossos
projetos, valores e significados”
Não são questões simples de
responder. Nem existem respostas certas ou erradas para elas. São questões
profundas, que varremos para debaixo do tapete enquanto tocamos nossas vidas.
Não estamos falando aqui de uma crise artificial e ideologicamente corrompida,
como a das “mudanças climáticas”. Falamos de um futuro que ninguém pode prever
e que pode trazer a redenção da espécie ou um grau inédito de sofrimento e
letalidade na história da humanidade.
Existem grupos que propõem
soluções radicais para essas questões. A última edição da revista The
Atlantic publicou uma reportagem de Adam Kirsch aprofundando essa
questão. “Até o mais radical pensador do século 20 não vai até o fim com a
perspectiva da extinção real do Homo sapiens, o que significaria o
fim de todos os nossos projetos, valores e significados”, escreve Adam Kirsch.
“A humanidade pode estar destinada a desaparecer um dia, mas quase todo o mundo
concordaria que esse dia seria adiado o máximo possível, assim como a maioria
das pessoas geralmente tenta adiar o inevitável fim de sua própria vida.”
Mas existe um grupo — ainda
pequeno — de pessoas que não só admite o fim da espécie humana como deseja que
isso aconteça. Não formam um movimento, mas uma corrente de pensamento, uma
filosofia. Não formam partidos políticas nem ONGs. São formas de pensar e agir
sobre o futuro.
Segundo
os anti-humanistas, para salvar a complexa teia de vida da Terra, seria
necessário eliminar a causadora de toda destruição, toda exploração, todo
desequilíbrio — a humanidade
A primeira, segundo a
reportagem da Atlantic, é chamada de anti-humanista. Ambientalistas
visam a melhorar as condições para que humanos convivam harmoniosamente com
outras espécies e o meio ambiente. Segundo os anti-humanistas, para salvar a
complexa teia de vida da Terra, seria necessário eliminar a causadora de toda
destruição, toda exploração, todo desequilíbrio — a humanidade.
Parte desses radicais se tornou “antinatalista”. Eles propõem simplesmente que os humanos parem de se reproduzir. O maior guru do antinatalismo é o filósofo sul-africano David Benatar [foto], para quem o desaparecimento da humanidade não retiraria do Universo qualquer coisa única ou valiosa. “A preocupação de que os humanos não existirão em algum tempo futuro é ou um sintoma da arrogância humana ou algum sentimentalismo fora de lugar.”
Benatar diz que nós
desenvolvemos um senso de autoimportância e que julgamos nossa própria situação
no mundo em regime de autointeresse. Nós mesmos, segundo o filósofo,
determinamos que somos imprescindíveis. “As coisas serão um dia do jeito que
deveriam ser — não haverá gente.” Alguns filmes e documentários já imaginaram
cenas de grandes metrópoles tomadas por plantas e animais selvagens, sem nenhum
ser humano à vista.
Para reforçar sua ideia,
Benatar cita uma pilha de estatísticas, do tipo “tumores malignos matam 7
milhões de pessoas por ano; 310 mil humanos morreram em consequência de
conflitos armados em 2000; 107 pessoas morreram por minuto em 2001” — e por aí
vai. Segundo ele, se essas vítimas não tivessem nascido, não sofreriam tudo o
que esses números mostram. Outro antinatalista, Karim Akerma, inclui todos os
outros animais nessa doutrina e propõe uma esterilização total e universal:
“Esterilizando animais, nós podemos libertá-los de serem escravos de seus
instintos e de trazerem mais e mais animais cativos nesse ciclo de nascer,
contrair parasitas, envelhecer, adoecer e morrer; comer e ser comido”.
Upload do
pensamento
O antinatalismo não é nenhuma
novidade. Alguns dos grupos iniciais do cristianismo seguiam essa linha, como
os marcionitas do século 2, para os quais o “mundo visível” seria uma criação
de Ievé, o Deus descrito no Velho Testamento. Em oposição a Ievé, as pessoas
deveriam abandonar este mundo. E evitar que mais humanos nascessem. Na mesma
época, os encratitas também acreditavam na interrupção da procriação humana.
Outras seitas em diferentes épocas e lugares concluíram que o nascimento de uma
pessoa condenava uma alma a ficar aprisionada num corpo material maligno, que levaria
essa alma a se afastar do bem. Muitos acreditam também que o budismo tinha um
sentido antinatalista, pois pregava que o sentido da vida é sofrer. Ao não
nascer, essa alma evitaria o sofrimento.
A outra corrente, os
transumanistas, não quer o fim da humanidade, mas a nossa transformação
radical, através de avanços na engenharia genética e da inteligência
artificial. Apostam num segundo estágio da civilização, através da colonização
de outros corpos celestes. Acreditam numa interação profunda entre os homens e
seus computadores e na colonização de outros corpos terrestres. Para os
transumanistas, a humanidade não seria extinta, mas transformada num novo
conceito de vida, misturando vida biológica com computadores. Nossa consciência
se transformaria numa espécie de arquivo mental espiritual, que poderia ser
transferida para uma nuvem de consciências sem corpos físicos. (As condições
tecnológicas para esse salto não estão tão longe quanto possam parecer.)
Podemos considerar as três
concepções (anti-humanismo, antinatalismo e transumanismo) ridículas, absurdas,
irreais, ilógicas, insanas e tudo que a gente quiser. Mas seria um erro tentar
encaixar essas visões de mundo nas caixinhas mentais “esquerda” e “direita”.
Elas tratam de questões existenciais, fundamentais e perenes. E servem —
no mínimo — para nos tirar do berço esplêndido das certezas imutáveis.
Título e Texto: Dagomir
Marquezi, Revista
Oeste, nº 151, 10-2-2023
Só existe um meio de salvar o planeta. Matando os políticos. Todos, sem exceção.
ResponderExcluirAparecido Raimundo de Souza
de Santo Eduardo RJ