terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Salvo pelo gongo

Aparecido Raimundo de Souza

História verídica. Só foram mudados os nomes dos personagens, para preservar a integralidade de suas identidades.

LUPÉRCIO DA SILVA se viu preso, numa tarde de sexta-feira, por volta das treze horas, na Praça da Sé, centro de São Paulo, por agentes da Delegacia de Polícia da Pessoa com Deficiência, esta situada na Brigadeiro Tobias, Centro Histórico de São Paulo, quando o mesmo vendia, numa banquinha improvisada, cacarecos importados do Paraguai e da China. Um telefonema anônimo o havia delatado como sendo o estuprador de uma menor de idade chamada Narcisa Paranhos de Oliveira, que vivia por ali, rondando as imediações, pedindo moedas aos transeuntes para sustentar a mãe e o padrasto bêbado, moradores da Cracolândia.

Para piorar seu quadro, a menor era deficiente. Se movimentava numa cadeira de rodas caindo aos pedaços. Logo que chegou frente à autoridade de plantão, o carrasco foi comendo o preso na porrada: 
— Então você “estuprou” a menina, seu sem vergonha? Tarado, vagabundo. Vou arrancar seu pelo à unha. Vai soltando a língua e cuspindo tudo o que sabe. Confessa, como foi, onde foi e como conseguiu desviar a atenção da princesinha. Vamos, anda...

Lupércio da Silva estava deveras apavorado. Realmente não fizera nada com a tal guria. Como provar a sua inocência diante de crime tão hediondo e bárbaro que lhe estava sendo imputado? Não tinha a menor ideia. Tentou argumentar:
— O Senhor deve estar equivocado. Não “estruprei” ninguém...
— Então foi obra do Espírito Santo?
— Seu “dotor”, não sei quem é esse tal de Espírito Santo, mas se o Senhor tá dizendo que foi ele, com certeza deve ter sido mesmo...

— Seu imbecil – vociferou o delegado. O Espírito Santo não cometeria esse tipo de barbaridade...
— Então “num” sei quem foi...
— Vou pendurar você no pau de arara. Tiro e queda. Você me dará o serviço mais rápido que o “The Flash”, ou seja, num abrir e piscar de olhos, tudo o que rolou entre você e a menor impúbere, ficará esclarecido:
— Pau de arara?
— Sim, meu amigo. Já ouviu algo a respeito dele?
— Não. Pelo amor de Deus, seu “dotor”. Jamais faria isso aí que o senhor está falando...

O delegado espumava de raiva:
— E o que eu estou falando exatamente?
— Que eu “estruprei” a Narcisa.
— E quem lhe disse o nome da mocinha?
— O senhor...
— Eu não. Vamos, confesse. Última chance ou pau de arara.
— Quem não deve, não teme. Pode me mandar para esse “seu amigo pau de arara”. Que Jesus tenha piedade de minha alma...
— Ah, então prefere entrar no castigo? Ótimo.

O delegado chamou dois policiais da equipe e mandou a ordem:
— Jeremias e Albino. Nosso amigo aqui quer conhecer o titio pau de arara. Vocês fazem as honras?
Os agentes da lei sorriram de uma forma animalesca e partiram para cima de Lupércio:
— Amigão, disse Jeremias ao prisioneiro. Quer mesmo conhecer o titio Pau de Arara?
Sem dar tempo para que Lupércio respondesse alguma coisa, Albino, mandou-lhe um soco direto na barriga, de forma inesperada. Lupércio se curvou sobre si mesmo caindo ao chão:
— Venha com a gente. Vamos passar para os aposentos ao lado. O titio pau de arara está doido para lhe dar as boas-vindas.

O trio saiu da sala do delegado e seguiu para uma outra dependência menor, no final de um corredor comprido. Pelo caminho, Jeremias e Albino seguiram debochando do miserável que seria submetido, dentro em pouco, às sevicias de uma sanha brutal e desumana:
— Vamos lhe dar uma dica prévia – voltou a falar Jeremias ao infeliz, de como será a coisa, e, claro, como funcionará na prática. O titio pau de arara, começou ele – nada mais é que uma barra de ferro entremeada entre duas mesas.

Fez uma pausa e prosseguiu:
— Nela penduraremos seu esqueleto de forma que o bastão da vara ficará bloqueada ente as conchas de seus braços e as dobras das pernas. Amarraremos seus tornozelos aos pulsos.
Mais gargalhadas:
— Você estará suspenso cerca de um metro acima do solo e permanecerá nessa posição fabulosa até que seu sangue pare de circular. Seu corpo inchará e você parará de respirar. Daremos uma seção de pequenos e amistosos choques elétricos, com eletrodos colocados em seu “pintinho e ânus”. Amigo, tenha plena certeza que em dois minutos o prezado soltará a língua cantando mais afinado que Cauby Peixoto.

Final dessa explicação, um tabefe violento e desnecessário estourou no rosto de Lupércio. Nu em pelo, devidamente acomodado no instrumento que o faria confessar que matara a própria mãe, sem tê-lo feito, Lupércio viu se esvaindo as suas forças, e pior, junto, de roldão, o direito de regressar à Praça da Sé e voltar a ser aquele honesto vendedor de um dos pontos mais famosos e cobiçados da Capital dos Paulistas. Enquanto isso, na Praça da Sé, o doutor Sarapião Fonseca, um dos clientes mais assíduos de Lupércio, não o vendo por ali, no lugar de sempre, entranhou-lhe a ausência.

Perguntou daqui, indagou dali. Por derradeiro, levantou as informações de que o rapaz não havia feito nada do que estavam dizendo. O que aconteceu, foi que um dos vendedores antigos, perdia vendas, levando em conta que Lupércio possuía mais clientes que ele. Amigo de um delegado safado e corrupto, o sujeito ligou para o pilantra inventando a história fantasiosa da Narcisa. O doutor Sarapião Fonseca, advogado da defensoria pública do fórum João Mendes e filho de um desembargador renomado, não deixou por menos. Agiu rápido.

Arranjou testemunhas, conseguiu a localização da mãe da Narcisa, que desmentiu tudo, inclusive confessando que a sua filha não sofria de nenhuma deficiência especial, tampouco usava cadeira de rodas. Tudo não passava de uma armação para arrecadar dinheiro das pessoas. O doutor Sarapião Fonseca preparou um Habeas Corpus e correu às barbas do pai. O procedimento distribuído num piscar de olhos. Caiu nas mãos de um amigo do pai do jovem advogado. De posse do “alvará de soltura” em decorrência do remédio heroico, o doutor Sarapião Fonseca voou para a delegacia.

Em lá chegando, o delegado quis tirar o dele da reta, alegando carecer de algumas diligências para “enviar o inquérito ao juiz criminal competente”. Contudo, cheio de cartas nas mangas, e sendo filho de um desembargador tido como linha dura, o doutor Sarapião Fonseca fez, inclusive, umas “ameaças brandas” ao chefe da Delegacia de Polícia. O delegado covarde, temeroso de vir a sofrer represálias futuras (havia contra ele um calhamaço de “enrolos”), não pensou duas vezes. Diante da ordem judicial colocou, em contínuo, o Lupércio da Silva em liberdade.

Evidentemente, embora tenha sido socorrido a tempo, Lupércio passou por maus bocados. Sofreu, em três dias, assombramentos e cagaços nas mãos dos policiais Jeremias e Albino. Entre eles, aguentou palmatórias, seções de afogamentos e uma série de choques elétricos nas partes íntimas. Foram relatadas, “a depois”, ao corregedor, outras sevícias que nem valem a pena ser trazidas à baila. O delegado e os policiais foram afastados. Hoje Lupércio da Silva, livre de qualquer acusação, comercializa as suas bugigangas tranquilamente na Estação Barra Funda, do Metrô.


Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 28-2-2023 

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