terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] N... q... l... i...

Aparecido Raimundo de Souza

GABRIEL ENTRA
sem tocar a campainha da casa de seu amigo Duda e, ao dar com ele, sentado na sala, diante da TV tela plana, vai logo indagando:
— Duda, o que você está fazendo?
Duda sorri, mostrando a perfeição dos dentes, e, sem olhar para seu interlocutor, responde austero e ríspido, destacando, uma por uma, as letras:
— Além de estar vendo meus desenhos preferidos, N... q... l... i...
— Como disse?
— N... q... l... i...
— Não entendi, Duda. Traduza.
— Traduzir? Como? Não faço à mínima!

Gabriel insiste:
— Explique essas quatro letras. N... q... l... i... repete o recém chegado se abrindo numa fisionomia carrancuda. — Está querendo me fazer de otário?
— Não, Gabriel. Longe de mim essa ideia. Juro por Deus que não sei...
— Não sabe o que quer dizer N... q... l... i...?
— Exatamente. Não faço a mínima.
— E como você vomita uma série de letras que desconhece, no seu dia a dia, se não tem a menor ideia de qual seja o significado?
— Foi o Beto, filho do seu Murilo, que saiu com essa “parada”.
— Ok! E ele não lhe explicou a “parada?”.

— Não.
— E por qual motivo o Beto, mencionou essa droga de N... q... l... i... pra você?
— Simples. Cheguei na casa dele justo na hora do almoço...
— E...?
— Entrei pelo corredor, ganhando os fundos. Ao ingressar na cozinha, topei com ele batendo na Dulcinha com um cabo de vassoura...
— Meu Deus! Que horror!
— Foi o que eu disse: “Meu Deus! Que horror!”.

— E você, Duda, para não se passar por um completo imbecil não perguntou o motivo dele estar surrando a irmã?
— Perguntei, lógico.
— E o que ele disse?
— Duda, seu intrometido. Caia fora. Por aqui, N... q... l... i...!

Gabriel fica ainda mais curioso e pensativo. Diz:
— Estranho. Muito estranho!
— O que você acha estranho, Gabriel?
— O Beto, filho do seu Murilo, estar batendo na irmã dele com um cabo de vassoura...
— Quarenta minutos depois que deixei a casa do Beto, o pai do Luiz, seu Paulo, me disse a mesma coisa...
— Ele também achou estranho o Beto estar descendo o cacete na irmã?
— Não!
— Então?
— Foi assim, Gabriel. Eu passei na casa do Luiz para entregar o caderno de Português que ele havia me emprestado...

— E daí?
— Daí, que eu bati palmas no portão. Ninguém veio atender...
— E os cachorros?
— Latiram feito “cão sem dono”.
— E o que você fez?
— Como os animais me conhecem, abri o portão e segui adiante, igual você acabou de fazer aqui...
— Continue...
— Ao chegar a varanda, ouvi gritos vindos do quarto...
— Gritos?

— Sim. Eram do Luiz.
— E o que você fez?
— Segui firme e forte. Pé ante pé, a respiração presa. Enquanto ganhava terreno, ia chamando pelo Luiz.
— Termine...
— Ao chegar na porta do quarto do Luiz, vi seu Paulo dando uns belos e fortes tapas no rosto do nosso amigo, que chorava e soluçava feito um louco.
— Que barbaridade!!!
— Foi o que também achei, e, por essa razão, me escapou um “Que barbaridade!”.
— Qual foi a reação de seu Paulo?

— Nem te conto. Os dois — pai e filho — se voltaram e deram comigo espantado, assistindo a cena. Perguntei ao Luiz por que ele apanhava, como uma forma de disfarçar a minha intromissão...
— E o que o pobre respondeu?
— Ele nada, mas seu Paulo urrou feito um leão vindo em minha direção, os olhos vermelhos de raiva:
— Desinfeta daqui seu verme. N... q... l... i...!!! – Enfatizou colérico.
— E você, que atitude tomou? Enfrentou o filho da mãe?
— Tá louco, Gabriel? Fiz o que o meu medo receoso mandou. Aliás, a única coisa sensata que pintou na minha cachola. Botei “quatro na perna do veado”, como dizia meu avô...

Gabriel coça a cabeça. Solta um risinho meio que sem graça:
— “Quatro na perna do veado?”.
— Isso. Saí correndo. Dei o fora. Ou melhor, me debandei, voando. Na rua, me veio à cabeça uma ideia genial. Perguntar ao Joe. O Joe é metido a saber tudo...
— Boa ideia. O Joe é inteligente. Estudioso, lê muito, sabe das coisas. Concluindo, você foi até ele, perguntou, se inteirou do assunto, e, agora, dando uma de João sem braço pretende me fazer de trouxa...
— Pare com isso, Gabriel. De onde tirou essa ideia absurda?
— Se não pretende tirar sarro da minha cara, me convença do contrário. Canta a pedra de uma vez.

— Depois de procurar pelo Joe, por todos os cantos da cidade, dei com ele tomando sorvete com a namorada sentado num dos bancos da praça da matriz. Sem mais delongas, mandei brasa:
— “Joe, tira seu amigo aqui de uma enrascada das brabas?”.
— O infeliz me fuzilou: — “Caraca, mano. Será que não tenho direito nem de tomar um sorvete sossegado com a “minha pequena? — No que se encrencou agora?”.
— “Não é bem uma encrenca, argumentei. — Estou com uma dúvida. — Uma dúvida muito grande e cruel”.
Ele, fazendo ares de zangado:
— “Desembucha logo, moleque”.
— Mandei a pergunta:

— O que significam as letras, N... Q... L... I...?”
— “Então é isso?”
— “Fiz que sim com a cabeça”. — “Você sabe o que elas querem dizer?”.
Joe, intrépido, quase me agrediu:
— “Claro. Qualquer burro sabe. — Seu jumento!”
— “Eu não sei...” — respondi, com humildade”.
Desafiador, porém, o miserável me rebaixou como se eu fosse um boçal:
— “Você pra burro, Dudu, só falta a prefeitura lhe dar uma placa com a identificação”.
— Tentei ser educado:
— “Manera, véi... burro não usa placa de identificação””.

— Que filho da mãe... Desgraçado!
— Joe, então cheio de marra e arrogância, menosprezo e pouco caso, veio pra cima de mim. Tripudiou comigo, até dizer chega:
— “Então, pra você ser um completo burro, não está faltando nada”.
— “Deixa de palhaçada e me esclarece de uma vez o significado dessas quatro letras. Fale Joe. Explica aí. Por favor”.
Joe repetiu as letras, uma a uma:
— “N... q... l... i...? É isso que quer saber?”,
— “Sim, meu amigo!... juro por Deus que vou embora e lhe deixo em paz”.

Gabriel, irrequieto morde as unhas:
— Vai, Duda, continue... e depois, vamos para “o depois...”. Ele esclareceu a sua dúvida?
— Mano, nem lhe conto! Joe sorriu alto e, finalmente, cheio de rancor nos olhos (naquele momento dono da situação) se fez cabeçudo e indelicado diante da minha ignorância completa. Querendo, logicamente, aparecer para a mulherzinha dele, risonho e feliz, vociferou, pondo fim ao nosso papo:

— “Imbecil essas quatro letras do nosso alfabeto querem dizer e, aliás, dizem: — “N... Q... L... I...!””.
Gabriel a ponto de ter um piripaque, treme as mãos, completamente fora de si:
— Que droga, cara. Pelo visto, você não insistiu. Meteu o rabinho entre as pernas e caiu fora?
— Pinoteei, meu caro... cai na estrada. Que mais poderia ter feito? O que você faria no meu lugar, depois de ser rebaixado, pisoteado e humilhado?
— Se fosse comigo, meu caro Dudu, juro por tudo quanto é sagrado. Ia até o armazém do seu Chico Jenipapo, comprava uma garrafa de coquetel molotov, acendia a bomba e jogava nos cornos dele e da namorada, ou mulher, sei lá... e faria isso sem nenhum remorso...

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Santo Eduardo, Campo dos Goytacazes Rio de Janeiro. 14-2-2023

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