Rui Ramos
Fez-se a guerra, segundo Salazar, para conservar os territórios ultramarinos como “parcelas da pátria”. Mas outro governo teria de ter feito a guerra também, fossem quais fossem os seus planos, desde que estes não passassem pela entrega imediata do ultramar aos partidos revolucionários armados. Porque não se fez essa entrega logo em 1961? Simplesmente porque o Estado Novo era uma ditadura anticomunista, que não gostava dos independentistas por achar que eles eram comunistas?
A ditadura do general Franco,
apesar de tão anticomunista como a de Salazar, não hesitou em 1956 em dar a
entender que retiraria de todas as suas possessões em África “logo que as
circunstâncias absolutamente o exigissem”, e assim o fez: renunciou ao
protectorado em Marrocos em 1956, deu independência à Guiné Equatorial em 1968,
e em 1973 reconheceu à população do Sahara Ocidental o direito à
auto-determinação. Porquê? Obviamente porque eram possessões pouco importantes,
sem população espanhola (embora o protectorado de Marrocos tivesse custado
imenso esforço e baixas ao exército espanhol nos anos 1920).
Pelo contrário, os franceses
na Argélia, os ingleses na Índia, ou os holandeses na Indonésia, onde os
interesses eram muito maiores, só cederam aos independentistas depois de muitos
anos, perante os custos de conter a insurreição. A França, a Inglaterra e a
Holanda eram democracias, governadas até pela esquerda, como a França. Em 1956,
ainda a Grã Bretanha mantinha três “guerras coloniais”, em Chipre, na Malásia e
no Quénia. E, no ano seguinte, a Grã-Bretanha e a França montaram uma invasão
do Egipto para defenderem os seus interesses no canal do Suez.
A França combateu na Argélia
durante oito anos, entre 1954 e 1962, devido ao milhão de franceses que lá
vivia há décadas, e que queria continuar a viver numa terra francesa. Quando o
general De Gaulle finalmente desistiu, quase provocou uma guerra civil em
França.
Ora, os portugueses formavam, depois dos cidadãos brancos da República da África do Sul e da Rodésia, o maior núcleo de povoamento europeu na África a sul do Sahara: em 1960, havia 172 529 brancos em Angola e 97 300 em Moçambique. Essa população continuou a crescer durante a década de 1960, chegando aos 335 000 em Angola e aos 200 mil em Moçambique. Angola e Moçambique eram, desde a década de 1950, das regiões mais prósperas de África. O governo que as quisesse abandonar precisava de explicar, aos directamente interessados e aos seus parentes em Portugal, porque é que ia confiar cerca de meio milhão de portugueses brancos aos cuidados dos leitores de Frantz Fanon, e sacrificar Estados prósperos às experiências revolucionárias que estavam a arruinar o resto da África.
É bom descontar o mito de que
a guerra teria sido determinada por uma qualquer embriaguez “imperial” induzida
pela exibição, nas escolas, dos mapas do ultramar. As colónias de África,
rebaptizadas como ultramar em 1951, eram aquisições recentes. Até à década de
1930, tinham sido sobretudo cenário de operações militares. Não haviam atraído
população branca, e sobretudo perderam bastante população negra, que emigrou
para as colónias europeias mais prósperas, como aconteceu no caso de
Moçambique. Depois da década de 1930, o interesse comercial pelas colónias
aumentou. Na década de 1950, começaram a chegar os colonos brancos em grandes
quantidades. Em 1960, já formavam uma comunidade apreciável, com um nível de
vida muito superior ao metropolitano.
Mas este povoamento era
demasiado recente e as províncias ainda não estavam suficientemente
desenvolvidas para formarem sociedades capazes de se defenderem a si próprias,
como a República da África do Sul. E precisariam de se defender, porque a
África de 1960 não era a América Latina de 1820, quando a minoria dos colonos
portugueses proclamou a independência do Brasil, declarou-se brasileira e
passou a governar as massas de índios e escravos negros. Na África ao sul do
Saara, na segunda metade do século XX, as “independências brancas” seriam
difíceis e combatidas, como se viu no caso da Rodésia.
Também não era possível aos
portugueses fazerem “independências negras” de fachada. Não havia, em 1960, uma
classe média mestiça ou negra suficientemente numerosa e aportuguesada a quem
entregar o poder. Pior: a que havia estava, em geral, conquistada para a causa
revolucionária. Mesmo que arranjasse alguns negros amigos, o governo português
teria de acabar por os defender contra os revolucionários, pelo menos
inicialmente.
Para além dos “colonos”, havia
a maioria da população negra. Cada território ultramarino português era um
complicado caleidoscópio de dezenas de grupos com as suas línguas, os seus
costumes, as suas religiões. Os partidos independentistas não se propunham
respeitar esta diversidade. Eram dominados por europeizados, que queriam fazer
em África “nações”, como na Europa e tendo até como línguas principais de
comunicação as línguas europeias. Para isso, propunham encetar uma brusca
transformação social. Era uma transformação que concebiam segundo ideologias
europeias, como o marxismo, e que contavam fazer a partir da administração
colonial montada pelos europeus, e com o apoio externo de potências europeias,
como a União Soviética.
Era este, no fundo, o programa
de partidos como o PAIGC na Guiné, o MPLA em Angola ou a FRELIMO em Moçambique.
De facto, faz todo o sentido ver estes independentistas como a última vanguarda
do colonialismo europeu em África. Em meados da década de 1960, já era claro
que este tipo de projectos estava a gerar, por todo o continente, ditaduras de
partido único e guerras civis. Um governo português que abandonasse o ultramar
teria de preparar-se para suportar o eco dos massacres e das tiranias, como
aliás aconteceu a partir de 1976, quando as “vítimas da descolonização” vieram
assombrar os oficiais do MFA.
Caso houvesse plena liberdade
de discussão pública em Portugal, como não havia sob o Estado Novo, teria
havido um grande debate, e certamente que os defensores da entrega teriam feito
ouvir a sua voz. Mas não é líquido que a opção do abandono imediato tivesse
sido a primeira a ser tomada. Aliás, nem mesmo em 1974, depois da queda do
Estado Novo, o foi. Não porque os portugueses estivessem a arder em fervor
imperialista, mas porque não havia soluções sem custos para o problema
ultramarino. A tragédia do ultramar é que nunca nenhum governo pôde escolher
entre o bom e o mau, mas sempre entre o mau e o pior. Foi difícil e
catastrófico retirar do ultramar em 1974? Sem dúvida. Mas não teria sido fácil
em 1961. Nem em 1955. E antes disso, quase ninguém pensara em retirar. Nem
mesmo o PCP e os demais anti-salazaristas.
Título e Texto: Rui Ramos
é historiador, professor universitário, co-autor do podcast Eo Resto é História [ver o perfil completo]. 17-2-2023
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