sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Independência das colónias: que opções, no Estado Novo?

Rui Ramos

Fez-se a guerra, segundo Salazar, para conservar os territórios ultramarinos como “parcelas da pátria”. Mas outro governo teria de ter feito a guerra também, fossem quais fossem os seus planos, desde que estes não passassem pela entrega imediata do ultramar aos partidos revolucionários armados. Porque não se fez essa entrega logo em 1961? Simplesmente porque o Estado Novo era uma ditadura anticomunista, que não gostava dos independentistas por achar que eles eram comunistas?

A ditadura do general Franco, apesar de tão anticomunista como a de Salazar, não hesitou em 1956 em dar a entender que retiraria de todas as suas possessões em África “logo que as circunstâncias absolutamente o exigissem”, e assim o fez: renunciou ao protectorado em Marrocos em 1956, deu independência à Guiné Equatorial em 1968, e em 1973 reconheceu à população do Sahara Ocidental o direito à auto-determinação. Porquê? Obviamente porque eram possessões pouco importantes, sem população espanhola (embora o protectorado de Marrocos tivesse custado imenso esforço e baixas ao exército espanhol nos anos 1920).

Pelo contrário, os franceses na Argélia, os ingleses na Índia, ou os holandeses na Indonésia, onde os interesses eram muito maiores, só cederam aos independentistas depois de muitos anos, perante os custos de conter a insurreição. A França, a Inglaterra e a Holanda eram democracias, governadas até pela esquerda, como a França. Em 1956, ainda a Grã Bretanha mantinha três “guerras coloniais”, em Chipre, na Malásia e no Quénia. E, no ano seguinte, a Grã-Bretanha e a França montaram uma invasão do Egipto para defenderem os seus interesses no canal do Suez.

A França combateu na Argélia durante oito anos, entre 1954 e 1962, devido ao milhão de franceses que lá vivia há décadas, e que queria continuar a viver numa terra francesa. Quando o general De Gaulle finalmente desistiu, quase provocou uma guerra civil em França.

Ora, os portugueses formavam, depois dos cidadãos brancos da República da África do Sul e da Rodésia, o maior núcleo de povoamento europeu na África a sul do Sahara: em 1960, havia 172 529 brancos em Angola e 97 300 em Moçambique. Essa população continuou a crescer durante a década de 1960, chegando aos 335 000 em Angola e aos 200 mil em Moçambique. Angola e Moçambique eram, desde a década de 1950, das regiões mais prósperas de África. O governo que as quisesse abandonar precisava de explicar, aos directamente interessados e aos seus parentes em Portugal, porque é que ia confiar cerca de meio milhão de portugueses brancos aos cuidados dos leitores de Frantz Fanon, e sacrificar Estados prósperos às experiências revolucionárias que estavam a arruinar o resto da África.

É bom descontar o mito de que a guerra teria sido determinada por uma qualquer embriaguez “imperial” induzida pela exibição, nas escolas, dos mapas do ultramar. As colónias de África, rebaptizadas como ultramar em 1951, eram aquisições recentes. Até à década de 1930, tinham sido sobretudo cenário de operações militares. Não haviam atraído população branca, e sobretudo perderam bastante população negra, que emigrou para as colónias europeias mais prósperas, como aconteceu no caso de Moçambique. Depois da década de 1930, o interesse comercial pelas colónias aumentou. Na década de 1950, começaram a chegar os colonos brancos em grandes quantidades. Em 1960, já formavam uma comunidade apreciável, com um nível de vida muito superior ao metropolitano.

Mas este povoamento era demasiado recente e as províncias ainda não estavam suficientemente desenvolvidas para formarem sociedades capazes de se defenderem a si próprias, como a República da África do Sul. E precisariam de se defender, porque a África de 1960 não era a América Latina de 1820, quando a minoria dos colonos portugueses proclamou a independência do Brasil, declarou-se brasileira e passou a governar as massas de índios e escravos negros. Na África ao sul do Saara, na segunda metade do século XX, as “independências brancas” seriam difíceis e combatidas, como se viu no caso da Rodésia.

Também não era possível aos portugueses fazerem “independências negras” de fachada. Não havia, em 1960, uma classe média mestiça ou negra suficientemente numerosa e aportuguesada a quem entregar o poder. Pior: a que havia estava, em geral, conquistada para a causa revolucionária. Mesmo que arranjasse alguns negros amigos, o governo português teria de acabar por os defender contra os revolucionários, pelo menos inicialmente.

Para além dos “colonos”, havia a maioria da população negra. Cada território ultramarino português era um complicado caleidoscópio de dezenas de grupos com as suas línguas, os seus costumes, as suas religiões. Os partidos independentistas não se propunham respeitar esta diversidade. Eram dominados por europeizados, que queriam fazer em África “nações”, como na Europa e tendo até como línguas principais de comunicação as línguas europeias. Para isso, propunham encetar uma brusca transformação social. Era uma transformação que concebiam segundo ideologias europeias, como o marxismo, e que contavam fazer a partir da administração colonial montada pelos europeus, e com o apoio externo de potências europeias, como a União Soviética.

Era este, no fundo, o programa de partidos como o PAIGC na Guiné, o MPLA em Angola ou a FRELIMO em Moçambique. De facto, faz todo o sentido ver estes independentistas como a última vanguarda do colonialismo europeu em África. Em meados da década de 1960, já era claro que este tipo de projectos estava a gerar, por todo o continente, ditaduras de partido único e guerras civis. Um governo português que abandonasse o ultramar teria de preparar-se para suportar o eco dos massacres e das tiranias, como aliás aconteceu a partir de 1976, quando as “vítimas da descolonização” vieram assombrar os oficiais do MFA.

Caso houvesse plena liberdade de discussão pública em Portugal, como não havia sob o Estado Novo, teria havido um grande debate, e certamente que os defensores da entrega teriam feito ouvir a sua voz. Mas não é líquido que a opção do abandono imediato tivesse sido a primeira a ser tomada. Aliás, nem mesmo em 1974, depois da queda do Estado Novo, o foi. Não porque os portugueses estivessem a arder em fervor imperialista, mas porque não havia soluções sem custos para o problema ultramarino. A tragédia do ultramar é que nunca nenhum governo pôde escolher entre o bom e o mau, mas sempre entre o mau e o pior. Foi difícil e catastrófico retirar do ultramar em 1974? Sem dúvida. Mas não teria sido fácil em 1961. Nem em 1955. E antes disso, quase ninguém pensara em retirar. Nem mesmo o PCP e os demais anti-salazaristas.

Título e Texto: Rui Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do podcast Eo Resto é História [ver o perfil completo]. 17-2-2023

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