Politizar o Banco Central para reduzir na
marra as taxas de juros é uma ideia tão antiga quanto estúpida
Rodrigo Constantino
Não faltam “especialistas”
querendo quebrar o termômetro para curar a febre do paciente. No caso da
economia brasileira, eles observam as altas taxas de juros e imediatamente
apontam os culpados: os especuladores, o mercado, o Banco Central independente.
Essa confusão entre causa e efeito está no cerne de muita ideia equivocada.
Politizar o Banco Central para reduzir na marra as taxas de juros é uma ideia
tão antiga quanto estúpida. A estupidez, porém, tem sido a marca registrada do
lulismo.
“Se os governos desvalorizam a
moeda para trair todos os credores, você educadamente chama este procedimento
de ‘inflação’”, ironizou George Bernard Shaw. Para compreender o enorme risco
do controle político de um Banco Central, talvez seja preciso voltar no tempo
até as origens do dinheiro. Segundo o austríaco Ludwig von Mises, o dinheiro
não pode surgir por decreto estatal ou algum tipo de contrato social acordado
entre os cidadãos; ele deve sempre se originar num processo de livre mercado.
O escambo, que os homens
praticam desde os primórdios da civilização, conta com sérias limitações. Um
problema crucial é a necessidade de um desejo mútuo coincidente, ou seja, os
dois agentes envolvidos na troca precisam concordar exatamente com o que
recebem em relação ao que oferecem. Outro problema é o das indivisibilidades,
isto é, uma troca teria de ter a mesma magnitude de valor. Basta pensar na
situação de alguém querendo trocar uma casa por vários produtos distintos, para
mostrar a impraticabilidade desse método. Eis quando surge o dinheiro.
Em The Mystery of Banking, o economista Murray Rothbard [foto] explica melhor a origem do dinheiro e os riscos inflacionários provenientes do papel-moeda. Justamente por conta dessas barreiras do escambo, que atende não mais que as demandas de uma vila primitiva, o próprio mercado criou gradualmente um meio de troca mais eficiente. Foi ficando claro para os comerciantes que o uso de uma commodity amplamente aceita como meio de troca fazia muito sentido. Em vez de um produtor de calçados ter de encontrar um vendedor de carne disposto a trocar exatamente carne por calçado, bastava ele vender no mercado seus produtos em troca dessa commodity, e depois usá-la para comprar os bens que desejava.
Para atender a esta função,
a commodity deveria ser demandada por seu valor intrínseco,
ser divisível, portável e durável, além de apresentar um elevado valor por
unidade. Durante a história, diversas commodities serviram
como moeda, mas invariavelmente o ouro e a prata foram os escolhidos quando
possível. Com o tempo, surgiu a demanda por certo padrão homogêneo de commodity usada
como moeda. Os reis estampavam seus rostos nas moedas de ouro, garantindo sua
qualidade e peso, e em troca cobravam a “senhoriagem”.
Durante
a Revolução Americana, para financiar o esforço de guerra, o governo central
emitiu vasta quantidade de papel-moeda, os “Continentals”
Automaticamente surgiu o risco
de o próprio governo alterar o peso das moedas e embolsar a diferença. Era o
começo do “imposto inflacionário”, ou a desvalorização da moeda. Esta prática
foi bastante facilitada com a introdução do papel como moeda, servindo no
início como um certificado garantindo o peso do ouro. É importante notar que
praticamente todas as moedas mais importantes, como o dólar, a libra, o marco
ou o franco, começaram simplesmente como nomes para diferentes unidades de peso
do ouro ou da prata.
Naturalmente, o risco de
falsificar a moeda sempre existiu, e por isso mesmo surgiu a demanda por
padrões e selos de governos ou bancos. A falsificação de moeda é uma fraude,
que enriquece o fraudador em detrimento do restante dos usuários da moeda. Os
primeiros a receberem o dinheiro falsificado se beneficiam à custa dos últimos.
O governo tem como função justamente evitar tal fraude, punindo com prisão os
criminosos. O grande problema é quando o próprio governo adere à prática de
“falsificação”, com o respaldo da lei. A invenção do papel-moeda foi um convite
tentador para os governos embarcarem nessa nefasta prática inflacionária.
Em primeiro lugar, o governo
deve garantir que os pedaços de papel são resgatáveis em seu equivalente em
ouro. Caso contrário, ninguém irá aceitá-los voluntariamente. Em seguida, o
governo geralmente tenta sustentar seu papel-moeda através de legislação
coercitiva, instando o público a aceitá-lo, incluindo os credores de montantes
em ouro, através das leis de “legal tender”. O papel-moeda passa a ser
aceito como pagamento dos impostos, e os contratos privados são forçados a
aceitar pagamento em papel. Quando a moeda começa a ser amplamente aceita e
utilizada, o governo pode então inflar sua oferta, para financiar seus gastos
de forma menos escancarada.
A inflação é o processo pelo
qual o imposto escondido é usado para beneficiar o governo e os primeiros a
receberem a nova moeda. Após um prazo suficiente, o governo adota um passo
definitivo: corta a ligação da moeda com o ouro que ela representava antes. O
dólar, por exemplo, passa a ter uma vida própria, independente do ouro que ele
representava anteriormente, e o ouro passa a ser apenas uma commodity qualquer.
O caminho para a inflação está totalmente livre de obstáculos.
O primeiro papel-moeda
governamental do Ocidente, segundo Rothbard, foi emitido na província de
Massachusetts, em 1690. Sua origem ilustra muito bem o relato acima.
Massachusetts estava acostumada a periódicas expedições militares contra a Quebec
francesa, e os ataques bem-sucedidos permitiam o pagamento dos soldados com a
pilhagem obtida. Dessa vez, no entanto, a expedição perdeu feio, e os soldados
retornaram para Boston sem pagamento e descontentes. O governo de
Massachusetts, então, precisava arrumar alguma outra forma para pagá-los. Em
dezembro de 1690, foram impressas 7 mil libras em notas de papel. O governo
garantira que tais notas seriam resgatadas em ouro ou prata em poucos anos, e
que novas notas não seriam emitidas. No entanto, já em fevereiro de 1691, o
governo declarou não ter recursos novamente, e emitiu mais 40 mil libras em
notas para pagar a dívida acumulada. Além disso, as notas não poderiam ser
resgatadas pelos próximos 40 anos. As portas do inferno inflacionário estavam
abertas!
Pelo menos em três vezes na
história norte-americana, desde o fim do período colonial, os norte-americanos
sofreram bastante com o sistema de fiat money. Durante a Revolução
Americana, para financiar o esforço de guerra, o governo central emitiu vasta quantidade
de papel-moeda, os “Continentals”. A desvalorização foi abrupta, e antes mesmo
do término da guerra essas notas não tinham mais valor algum. O segundo período
foi durante a guerra de 1812, quando os Estados Unidos saíram do padrão ouro,
mas retornaram dois anos depois. O terceiro período ocorreu durante a Guerra
Civil, com a emissão dos greenbacks, notas não resgatáveis para
pagar a guerra. No final da guerra, os greenbacks tinham
perdido metade de seu valor inicial. Mais recentemente, pode-se falar numa
quarta fase de elevada inflação norte-americana, na década de 1970. Após
medidas keynesianas adotadas pelo governo, a inflação medida pelo Índice de
Preço ao Consumidor (CPI) subiu mais de 8% ao ano na década, fazendo com que o
dólar perdesse metade de seu valor no período entre 1969 e 1979.
O mecanismo encontrado pelos
países desenvolvidos para mitigar esse risco da política
inflacionária foi justamente a criação de bancos centrais independentes, para
separar o ciclo político do econômico. Com quadros técnicos e um mandato
estritamente voltado para a preservação do valor da moeda, esses bancos
centrais estariam mais protegidos da tentação política de apelar para o imposto
inflacionário. Nem sempre essa blindagem funciona, mas ela tem sido
razoavelmente eficaz no mundo livre. Já governos populistas invariavelmente
seguem pela rota inflacionária, como a Venezuela e a Argentina podem atestar.
Esses são os exemplos que Lula pretende seguir.
Título e Texto: Rodrigo
Constantino, Revista Oeste, nº 151, 10-2-2023
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