Num tal esquema global de restrição da liberdade de expressão, o partidarismo truculento dos nossos Tribunais Superiores é apenas a espuma do fenômeno
Ilustração: Treety/Shutterstock
Todos no Brasil hão de
lembrar, pois faz parte da nossa recentíssima história, e foi indecente o
bastante para se destacar mesmo num contexto habitualmente insalubre. Aconteceu
em 13 de outubro de 2022. Nesse dia, a maioria dos ministros do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), imbuídos da tarefa de combater as “fake news”
durante o período eleitoral — as quais, segundo a narrativa midiática
dominante, haviam sido responsáveis pela vitória de Jair Bolsonaro no pleito
anterior —, determinou a censura à produtora Brasil Paralelo, por conta de
vídeos relembrando esquemas de corrupção envolvendo o então candidato à
Presidência Luiz Inácio Lula da Silva.
Na decisão, o ministro Ricardo
Lewandowski notabilizou-se por haver cunhado a expressão “desordem
informacional”, denotando um tipo de “desinformação” que, embora recorrendo a
notícias verdadeiras, induziam o público a extrair uma conclusão falsa e, pior
ainda, prejudicial à imagem do candidato que Lewandowski e seus colegas queriam
ver triunfar. Acompanhando o voto do colega — assim como haviam feito Cármen
Lúcia (aquela da censura “excepcionalíssima”) e Benedito Gonçalves (aquele em
cujo rosto rechonchudo o referido presidenciável aplicara tapinhas carinhosos)
—, o presidente do tribunal, Alexandre de Moraes, explicou a teratologia
jurídica: “É a manipulação de algumas premissas verdadeiras, onde se juntam
várias informações verdadeiras, que ocorreram, e que trazem uma conclusão
falsa, uma manipulação de premissas”.
Voilá! Com essa pirueta retórica, estava autorizada a censura de qualquer informação ou opinião que pudesse pôr em xeque a nobre missão de eleger Lula e salvar a democracia trans (a ditadura socialista que se identifica como democracia).
Dizia eu que todos no Brasil
hão de lembrar desse fato. O que nem todos no país sabem é que, por maior que
seja a licença poética sempre reivindicada para a administração da justiça
progressista (isso desde o célebre fatiamento do julgamento do impeachment de
Dilma Rousseff), Lewandowski não tirou da própria cabeça a ideia de “desordem
informacional”.
Ocorre que o Brasil ocupa uma posição colonizada e subalterna num grande arranjo supranacional de poder que não seria exagerado chamar de Internacional da Censura, e os hábitos adotados tardiamente na colônia advêm de modismos criados na metrópole. Num tal esquema global de restrição da liberdade de expressão, esquema que abarca as elites política, financeira e comunicacional de boa parte do planeta, e no qual se imiscuem as esferas pública e privada, o partidarismo truculento dos nossos Tribunais Superiores é apenas a espuma do fenômeno, mimetizando uma série de iniciativas provenientes do assim chamado Primeiro Mundo. No caso da “desordem informacional”, dos EUA.
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Foto: Antonio Augusto/TSE |
Em 15 de novembro de 2021,
enquanto no Brasil se comemorava (ou se lamentava) a “proclamação” (ou o golpe
de instauração) da República, uma organização sem fins lucrativos chamada Instituto
Aspen — cujo objetivo declarado é criar “uma sociedade livre, justa e igualitária” —
publicava um documento intitulado “Relatório Final da Comissão sobre Desordem Informacional”. Em seu website,
a referida comissão (que tem entre os membros o príncipe Harry, mais conhecido
como marido de Meghan Markle) descreve seu propósito nos seguintes termos: “Esta iniciativa busca identificar e priorizar as fontes
e as causas mais críticas de desordem informacional, oferecendo uma série de
ações de curto prazo e metas de longo prazo para auxiliar o governo, o setor
privado e a sociedade civil a lidarem com a crise contemporânea de fé nas
principais instituições”.
O
complexo industrial da censura combina métodos ortodoxos de manipulação psicológica
— muitos deles desenvolvidos pelas Forças Armadas norte-americanas durante a
Guerra ao Terror — com ferramentas tecnológicas altamente sofisticadas
A “Comissão sobre Desordem
Informacional” e o instituto que a sedia fazem parte de uma vasta rede de
organizações e iniciativas que, sob o pretexto de combater as “fake news”
e o “discurso de ódio”, tem como único propósito o controle do fluxo de
informações e opiniões na internet. Como meio para esse fim, e atuando de
maneira notavelmente coordenada, a rede lança mão de uma sofisticada engenharia
de censura, bem como de suas próprias campanhas de desinformação e assassinato
de reputação. A complexa estrutura começou a ser destrinchada há alguns dias
pelo jornalista Michael Shellenberger, em
depoimento a um comitê da Câmara dos Deputados dos EUA (U. S. House
of Representatives) que investiga o uso das estruturas do governo
federal para a perseguição política a adversários, e, mais particularmente, o
fomento do deep state norte-americano à censura doméstica e a
operações de infowar lançadas entre os anos de 2016 e 2022.
Junto com seus colegas Matt
Taibbi e Bari Weiss, Shellenberger foi um dos primeiros jornalistas a terem
acesso em primeira mão aos assim chamados “Twitter Files”, entregue-lhes
diretamente por Elon Musk, o novo dono do Twitter. Como se sabe, os documentos
revelam um perturbador conluio entre agências governamentais, instituições
acadêmicas, ONGs, redes sociais e o Partido Democrata para censurar cidadãos a
respeito de vários assuntos, incluindo a origem do Sars-CoV-2, a eficácia e a
segurança das vacinas, o laptop de Hunter Biden, a integridade
eleitoral, as mudanças climáticas, os combustíveis fósseis, entre outros.
Em seu depoimento no Congresso norte-americano, Shellenberger descreve com riqueza de detalhes o que chama de “complexo industrial da censura”. O termo remonta ao célebre discurso de despedida proferido em 1961 por Dwight Eisenhower, no qual o então presidente norte-americano alertava sobre “a influência indevida exercida pelo complexo militar-industrial”. Eisenhower temia que esse “complexo”, formado por empresas contratadas pelo governo e o Departamento de Defesa, pudesse “ameaçar nossas liberdades e os nossos processos democráticos”. Temia, em suma, que as políticas públicas “se tornassem cativas de uma elite científica e tecnológica”.
De acordo com Shellenberger,
os temores de Eisenhower tinham fundamento, pois hoje os impostos
norte-americanos têm servido para sustentar justamente um complexo industrial
da censura dirigido por uma elite científica e tecnológica que ameaça a mais
paradigmática democracia moderna. O jornalista cita uma série de organizações —
como o próprio Instituto Aspen, o Observatório da Internet da Universidade de
Stanford, a Universidade de Washington, dentre muitas outras — que mantêm laços
estreitos e totalmente indevidos com o Departamento de Defesa, a CIA e outros
órgãos de Estado. Sua atuação não consiste em propor um debate público sobre,
por exemplo, os limites da Primeira Emenda à Constituição Norte-Americana, que
impede o Congresso de restringir direitos fundamentais, como a liberdade de
expressão e de imprensa. Em vez disso, o que fazem é criar listas negras de
pessoas-alvo, e em seguida pressionar e chantagear as redes sociais para que as
censurem, reduzam-lhes o alcance e eventualmente as excluam definitivamente da
ágora virtual.
O complexo industrial da
censura combina métodos ortodoxos de manipulação psicológica — muitos deles
desenvolvidos pelas Forças Armadas norte-americanas durante a Guerra ao Terror
— com ferramentas tecnológicas altamente sofisticadas, incluindo a inteligência
artificial. Seus integrantes — muitos deles oriundos dos setores de
contraterrorismo e defesa nacional — passaram do combate aos terroristas da
al-Qaeda ou do Estado Islâmico, ou aos hackers russos e
chineses, para o monitoramento e a perseguição contra cidadãos norte-americanos
comuns e figuras públicas politicamente indesejáveis. O parâmetro para o
recurso ao aparato governamental de defesa e inteligência foi rebaixado de
combate ao terrorismo para combate ao “extremismo” e, em seguida, à “má
informação (misinformation)”. Ou seja, para mover os recursos do Estado
a fim de impedir a atuação política de uma pessoa, o governo e seus aparelhos
já não precisam provar que ela é terrorista ou extremista. Basta alegar que a
opinião por ela expressa nas mídias sociais é errada.
As operações de informação do
complexo visam a influenciar e até mesmo dirigir a imprensa tradicional. Para
isso, uma prática tradicional do jornalismo chegou a ser interditada. Desde ao
menos o começo dos anos 1970, quando o The Washington Post e
o The New York Times decidiram publicar documentos sigilosos
do Pentágono sobre a Guerra do Vietnã, os repórteres têm entendido como dever
profissional a divulgação de material vazado, desde que o conteúdo seja de
interesse público, e sobretudo quando se trata de fiscalizar a atuação de
políticos e agentes do Estado. Ocorre que, em 2020, o já referido Instituto
Aspen e o Centro de Política Cibernética da Universidade de Stanford
orquestraram um grande lobby com jornalistas, instando-os a
abandonarem essa regra tácita e não cobrirem informação vazada, de modo a
prevenir a disseminação de “notícias falsas”.
Para justificar a censura, os
integrantes do complexo alegam querer proteger a sociedade dos males concretos
causados pela “desinformação”. O problema é que sua definição de “mal” é muito
mais ampla e nebulosa do que a prevista em lei. Os “Twitter Files” revelaram,
por exemplo, que, em 2021, pesquisadores de Stanford reunidos numa iniciativa
chamada “Virality Project”
entraram em contato com executivos da rede social para exigir que fossem
censuradas postagens que, apesar de veicular informações verdadeiras, pudessem
causar “hesitação quanto à vacinação”. Ou seja, aquilo que começa sob o pretexto de impedir a
circulação de notícias falsas logo degenera em censura a informações
verdadeiras, porém perigosas (para quem?). E se o leitor lembrou aqui da
“desordem informacional”, ele está na pista certa.
Para notar a gravidade da atuação do complexo, basta saber que o Departamento de Segurança Nacional dos EUA (DHS) criou formalmente um escritório de censura doméstica. A informação foi publicada no portal The Intercept, que teve acesso a documentos vazados da agência. Um relatório interno propunha enquadrar qualquer postagem que a agência considerasse “desinformativa” em relação ao processo eleitoral como um ataque cibernético a uma “estrutura crítica” do Estado norte-americano. Ou seja, de um dia para o outro, o emissor de uma opinião “errada” era considerado um subtipo de terrorista.
Uma mesma cosmovisão parece
povoar a mente dos membros do complexo, uma cosmovisão essencialmente elitista.
Os censores imaginam-se capazes, ou ao menos mais capazes que os demais
cidadãos, de determinar categoricamente a verdade ou a falsidade de uma
determinada informação, bem como detectar intenções ocultas e espúrias por
detrás de uma opinião. Os portadores dessa ideologia acreditam que os assim
chamados “especialistas em desinformação” — como vários deles se definem —
estão em posição de exigir censura do que definem como má informação (misinformation)
ou desinformação (disinformation). Resta que se apresentar como
“especialista em desinformação” é o mesmo que se apresentar como “especialista
na verdade”, algo que, assim formulado, soaria obviamente ridículo e cabotino.
Tão ridículo e cabotino quanto, digamos, um magistrado de província que, do
alto de uma trajetória profissional fracassada, resolvesse posar de “editor de
um país inteiro”.
Portanto, a pretensão de
sanear o debate público mediante a restrição da circulação de “notícias falsas”
é mesmo ridícula e cabotina. Mas ela seria apenas isso — um surto quase cômico
de arrogância — caso as intenções de seus proponentes fossem realmente as
declaradas. Hoje, todavia, sabemos que não o são. O objetivo final dos censores
não é o bem comum, na hipótese de que o controle da desinformação o pudesse
prover. Como bem resume Shellenberger: “O complexo industrial da censura é uma
rede de instituições governamentais, não governamentais e acadêmicas
ideologicamente alinhadas, que descobriram nos últimos anos o poder da censura
para proteger os próprios interesses contra a volatilidade e os riscos do
processo democrático”.
Resta que o complexo
transcende e muito as fronteiras norte-americanas, consistindo hoje, como já o
sugerimos, numa vasta Internacional da Censura. Os brasileiros estamos ficando
bem acostumados com a franquia local do negócio, e a sensibilidade de muitos já
está treinada para esperar arbítrio, censura e perseguição ali onde se escutam
palavras melodiosas como “democracia”, “debate saudável” e “direitos humanos”.
Afinal, não se faz um totalitarismo sem uma boa pitada de açúcar e
sentimentalismo. Na iminência de espancar, torturar e matar centenas de
chineses durante a Revolução Cultural, o que disse Mao Tsé-tung não foi algo como:
“Morram, seus desgraçados!”. Não, o que lhe saiu da boca em vez disso foi:
“Deixem que floresçam cem flores”. Portanto, deixem que agora floresçam as
flores da censura. Afinal, se as palavras machucam, recomenda-se o silêncio
saneador. Ou, como diria Karl Kraus: “Quem tiver algo a dizer, dê um passo à
frente e cale-se!”.
Título e Texto: Flávio
Gordon, Revista Oeste, nº 157, 24-3-2023
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