sexta-feira, 17 de março de 2023

A ressaca

Muitas pessoas, conscientes da importância dessa eleição para o Brasil, e compreendendo as consequências da vitória de um projeto da esquerda radical, perderam o rumo

Roberto Motta

Girando e girando no giro crescente
O falcão não pode ouvir o falcoeiro;
As coisas desmoronam; o centro não se sustentará;
Anarquia é lançada sobre o mundo,
Avança uma maré suja de sangue, e em todos os lugares
A cerimônia da inocência é abafada;
Aos melhores homens falta convicção, enquanto os piores
Estão cheios de intensidade apaixonada.

William Butler Yeats, A Segunda Vinda 

Como falar de amargura sem ser amargo? Como falar de uma perda imensa, devastadora, se a natureza da perda afeta nossa própria capacidade de descrevê-la?

Como explicar o que aconteceu, de fato, no Brasil, nos últimos anos, e que continua acontecendo agora, sem, nesse processo, comprometer nossos direitos, nossa sanidade, nossa segurança e nossa liberdade?

Eis o fato essencial: a partir de 2014, o brasileiro renovou sua crença nas instituições e nas leis, e em sua validade, seriedade e permanência. Os brasileiros voltaram a se interessar por política. Um dos aspectos desse fenômeno é descrito como o renascimento da direita brasileira — sempre entendendo a direita como uma corrente política composta, majoritariamente, de liberais e conservadores, e aversa a todo tipo de autoritarismo. 

Avenida Paulista, novembro de 2014. Foto: Will Rodrigues/Shutterstock

Sem o registro de uma grande mídia profissional e imparcial, como saber o que realmente aconteceu na última década? Darei meu testemunho — o testemunho de quem foi participante de alguns dos principais eventos desses anos, como cidadão comum e, duas vezes, como candidato: primeiro a deputado federal (em 2018) e depois a vereador (em 2020). Meu “despertar” para a política acontecera em 2009, quando eu e um então amigo querido resolvemos embarcar na (insensata, porém maravilhosa) aventura de criar um partido político, que acabou se tornando o partido Novo.

Estive em todas as manifestações desde 2014. Andei no meio das multidões, subi em carros de som, discursei várias vezes, fui incluído em dezenas de grupos de WhatsApp. Fiz palestras do Rio Grande do Sul ao Amazonas, sempre sobre os mesmos temas: liberdade, segurança pública, combate à corrupção. Em resumo, sobre como mudar o Brasil. Nesse meio-tempo publiquei quatro livros.

Pouco importavam a perda de vidas ou o desastre econômico; o que importava era a chance de, desde o primeiro minuto, colocar a culpa de tudo que viesse a acontecer no presidente Bolsonaro

Discutíamos, sonhávamos e trabalhávamos por uma forma melhor de fazer política. Não pedíamos uma política pura, desinteressada, virginal; sabíamos que isso não era possível. Ainda assim, tínhamos a ousadia de desejar um sistema político em que os cargos mais importantes do país não fossem ocupados pelas piores pessoas.

Não é exagero dizer que o Brasil se embriagou de liberdade.

Tivemos conquistas importantes, inéditas — e acreditamos que essas conquistas durariam para sempre.

Acreditamos na criação de mecanismos que impedissem a impunidade de políticos corruptos. Acreditamos que diminuiria um pouco a distância entre as convicções que expressamos no voto e as ações dos eleitos. Acreditamos em uma Justiça que nos protegeria do crime violento e da corrupção, sem ceder às pressões de poderosos.

Essa crença não se limitou aos ativistas políticos ou às grandes cidades. Ao contrário, pela primeira vez, no tempo de nossas vidas, ela chegou a pessoas que nunca tinham se interessado por política.

Virou lugar-comum dizer isso, mas continua sendo a expressão de uma verdade profunda e de uma enorme surpresa para a minha cética geração: muitos brasileiros passaram a conhecer melhor a formação dos Tribunais Superiores do que a escalação da Seleção Brasileira.

Esse sempre foi, em nosso imaginário, o marco do momento em que o Brasil tomaria consciência de si próprio: a troca do futebol pela política como principal interesse.

Foi isso que ocorreu. 

Entre as cenas que presenciei está uma conversa do porteiro-chefe de um edifício residencial com os porteiros auxiliares e serventes, na qual o porteiro-chefe explicava o que estava em jogo nas eleições de 2022. Suas explicações nada deviam, em informações e clareza, às de um bom cientista político.

Mas, enquanto o brasileiro comum se embriagava nas ruas com inéditos sentimentos de patriotismo, liberdade e justiça, longe dali, na penumbra de escritórios luxuosos, planejava-se com detalhe a reversão das conquistas daqueles anos.

Esses planos começaram a ser executados já no início do governo Bolsonaro.

A primeira decisão foi a de submeter o presidente a um impeachment a qualquer custo.

Então veio a pandemia, considerada uma dádiva pela esquerda; várias de suas lideranças afirmaram exatamente isso. Pouco importavam a perda de vidas ou o desastre econômico; o que importava era a chance de, desde o primeiro minuto, colocar a culpa de tudo que viesse a acontecer no presidente Bolsonaro e nas forças populares que o apoiavam. 

Assim aconteceu na República Federativa do Brasil, da mesma forma que aconteceu nos Estados Unidos da América. A partir daquele momento, para a maioria da mídia e para o grupo político de oposição — apoiado pela intelligentsia e por ativistas judiciais incrustados em todas as instituições do Estado —, a verdade tornou-se um detalhe irrelevante e inconveniente.

Uma sequência de atos políticos e decisões sem precedentes aconteceu diante dos nossos olhos, ignorando as regras mais elementares e consolidadas sobre direitos civis, separação de Poderes, democracia e liberdade.

Tudo, claro, em nome de um certo Estado Democrático de Direito, expressão incansavelmente repetida, em tom de repreensão ou ameaça, por senhores carrancudos em discursos intermináveis. Era um lembrete de que, no Brasil, até a lógica mais elementar pode ser violada por poderosos, e qualquer coisa pode ser transformada em seu oposto, sem que seja necessário sequer mudar seu nome.

Assistimos à destruição da liberdade em nome da liberdade.

O véu caiu, e o Leviatã mostrou a face.

Até o quarto Poder — a imprensa — deu um salto triplo carpado e mergulhou de cabeça nessa piscina distópica, com a criação de um inédito consórcio de veículos de imprensa, unindo os principais veículos de mídia em um só, com o objetivo de descrever o que acontecia no Brasil, quase como o oposto do que realmente ocorria.

Esse “consórcio” de informadores, saído direto das páginas do livro 1984, de George Orwell, é responsável por pérolas imortais, como a “despiora da economia”, e pela técnica espetacularmente desavergonhada de apresentar uma informação positiva sempre terminada com “mas”, e seguida de alguma ponderação negativa, em geral irrelevante. 

Talvez nunca tenha existido, em nossa acidentada história, um ataque com tanta virulência e abrangência contra tudo e todos que pudessem ser, ainda que remotamente, associados a um governo.

Esse ataque não poupou o cidadão comum, que foi às ruas aos milhões, vestindo camisa verde-amarela, enrolado na bandeira nacional. Ele foi ofendido e atacado na mídia, acusado de crimes e cancelado nas redes. Simples opiniões expressas em um grupo privado de WhatsApp produziram consequências gravíssimas.

Foi o esgarçamento de tudo.

O resultado foram eleições que permanecerão uma memória ruim para milhões de brasileiros pelo resto de suas vidas. Para eles, o ano de 2022 nunca terminou.

Restaram desânimo, desilusão e, em muitos casos, desistência da política.

Há outra consequência muito ruim.

Algumas pessoas, sem compreender as pressões que foram exercidas sobre veículos de mídia de direita, decidiram que eles deveriam ser ignorados ou cancelados, porque não conseguiam mais manter a linha editorial que sempre seguiram até as eleições de 2022.

Ou seja: além do ataque da esquerda, que incluiu incessante ativismo judicial e a atuação de grupos semiclandestinos pressionando pelo cancelamento dos contratos de anunciantes, os veículos de mídia de direita passaram a ser atacados também por setores da própria direita — atacados por terem sido vítimas das táticas da esquerda.

A queda de audiência nos poucos veículos de mídia de direita ainda existentes foi desastrosa; em muitos casos, fatal.

Estávamos embriagados de liberdade. Chegou a ressaca.

Com ela vieram o choque, a decepção, a tristeza, a incredulidade e, frequentemente, a depressão. Muitas pessoas, conscientes da importância dessa eleição para o Brasil, e compreendendo as consequências da vitória de um projeto da esquerda radical — desde a economia até a segurança pública —, perderam o rumo.

Nessa desorientação, muita gente decidiu se desligar de tudo.

É uma ressaca brutal, cruel, que acontece justamente quando os defensores da liberdade deveriam estar em mobilização máxima.

Não há a quem culpar.

É natural que aqueles que sofreram intimidação brutal e violação de direitos se recusem a participar de uma política que parece a encarnação da corrupção institucionalizada, uma articulação de poderosos para manter oprimida, desinformada e pobre a maior parte da população.

Vivendo uma farsa — derrotada, ameaçada e roubada de seus direitos: é assim que muita gente se sente hoje.

O que aconteceu no Brasil nos últimos meses desafia explicações.

Mas, um dia, explicações terão de ser dadas.

Ninguém fica de ressaca a vida inteira.

Título e Texto: Roberto Mota, Revista Oeste, nº 156, 17-3-2023 

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Um comentário:

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    Tudo por nada. A voz do povo não tem ressonância. Vale mais um saco de ratos assanhados cagando no poder e limpando as respectivas bundas com a "Bundeira brazzzzzzileira". Viva a nossa eterna "Desordem e Congresso".
    Aparecido Raimundo de Souza
    de Vila Velha ES

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