quarta-feira, 8 de março de 2023

Falinhas mansas

João Pedro Marques

As pessoas politicamente corretas vigiam (e às vezes corrigem) o que se diz no mundo ocidental. Porém, ao contrário do que tentam fazer-nos crer, a sua hipervigilância não é necessária nem nos protege de nenhuma ameaça real. Antes das últimas décadas, isto é, antes do politicamente correto ter chegado com o seu caderno de interditos, já havia gente que se expressava sem precisar de corretores do pensamento e da linguagem.

Essa gente vivia numa atmosfera mais espontânea e mais verdadeira do que a nossa, sem, por isso, ser necessariamente racista, xenófoba, sexista e todas essas coisas que os fiscais do politicamente correto gostam de descortinar, com os seus olhos de raios X, atrás de cada porta ou debaixo de cada tapete.

Para que serve, então tanto controle e vigilância? Haverá quem pense que não serve para nada, que é tão só uma herança tardia dos exageros dos anos 1960-70, e os factos parecem confirmá-lo. Alguns deles são tão divertidamente insólitos que as pessoas tendem a sorrir e a aderir a modas e procedimentos que lhes parecem inocentes. Mas não são. Se olharmos com mais atenção vemos que o politicamente correto corresponde ao projeto social e político daqueles a que Frederick Crews chamou “ecléticos de esquerda”, gente mais ou menos próxima do marxismo e que continua a ter como objetivo a revolução, só que, agora, é de uma revolução cultural que se trata.

Essas pessoas acreditam que a língua e as representações moldam e transformam a realidade que se aborda e, portanto, se conseguirem fazer mudar designações, símbolos e imagens, mudarão, a prazo, essa realidade. O seu método “transformador” não conhece, aliás, limites cronológicos e aplicam-no retroativamente, como no 1984 de Orwell, modificando denominações antigas – numa obra literária, por exemplo, para melhor “ensinar” o presente.

Tentam transformar as sociedades a partir de dentro, seguindo a via suave e paulatina da linguagem, da censura e do ensino. É um marxismo reprocessado a procurar chegar lá pé ante pé, e era bom que os cidadãos que encolhem os ombros perante as originalidades do politicamente correto se apercebessem de que estão perante uma ameaça à liberdade de expressão, e não só.

Não acreditam? Olhem para quem, nos Estados Unidos, quer fazer desaparecer as estátuas de Robert E. Lee e de outras figuras ligadas à história do Sul escravista. Com essa decisão abriram a porta aos racistas e neonazistas, e à dramática sequência de acontecimentos que conhecemos. Não que não possamos pôr e tirar símbolos da praça pública. Podemos. Mas, de acordo com as sondagens, só 27% da população concorda com a remoção das estátuas.

Porém, os politicamente corretos não se prendem com esse “detalhe” e as estátuas já começaram a sair ou a cair em Nova Orleães, Baltimore, Durham. As pessoas que as removem ou abatem têm o mesmo espírito e a mesma conduta dos talibãs afegãos que destruíam as estátuas milenares de Buda, mas, como usam jeans e frequentam as nossas universidades, achamos que não são uma ameaça. Erro nosso.

Eles querem mudar a memória coletiva e conduzem um ataque tão feroz nessa direção que, se fosse hoje, Joan Baez, a musa da esquerda, já não gravaria The Night They Drove Old Dixie Down. Por quê? Porque essa canção de 1969 é uma descrição do modo de ver e sentir da gente do Sul durante a guerra da Secessão. Aliás, a letra refere com admiração e respeito o general Robert E. Lee (cujas estátuas estão a ser retiradas do espaço público).

O exemplo desta canção, aplaudida durante décadas, mas que agora não ressoaria num campus universitário sem levantar protestos, revela bem o que mudou no nosso mundo em termos de fechamento de espírito, de fanatismo, e o abismo para onde, com falinhas mansas, têm vindo passo a passo a empurrar-nos.

É, portanto, tempo de acordarmos e de repararmos que o politicamente correto não é uma coisa divertida nem inócua. É uma mistura de moralismo e radicalismo, com tanto de Rousseau como de Robespierre, e que mandará instalar as correspondentes guilhotinas assim que puder fazê-lo. 

Título e Texto: João Pedro Marques, Diário de Notícias, 22-8-2017, in “Descobrimentos e outras ideias politicamente incorretas”, Guerra & Paz Editores, janeiro de 2023, páginas 157/159 
Digitação: JP, 08-03-2023

Relacionados: 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-