sexta-feira, 22 de agosto de 2025

[Aparecido rasga o verbo] Tipo assim, quando rosnam as demências distantes

Aparecido Raimundo de Souza

NA MESA DA COZINHA onde reside dona Bundergundes Pilombeta de Godoy e seu marido Chuchando Fiofó de Gogoy o tempo parecia repousar após servido o ameno e saboroso café da manhã, sempre uma hora antes deles saírem para o serviço. Dona Bundergundes, enfermeira, sessenta anos, cuidava de vários idosos no Hospital Geriátrico e de Convalescentes no bairro do Jaçanã. Seu esposo Chuchando, de sessenta e oito anos, dono de duas farmácias no Tatuapé, senhorzinho sacudido, bem-apessoado e de rija têmpera, se embrenhava do bairro da Freguesia do Ó (onde morava) para as bandas do seu comércio. 

Por conta disso, todos os dias, impreterivelmente antes das cinco, eles faziam o dejejum e saiam, só retornando ao lar por volta das vinte horas. À noite, enquanto assistiam um pouco de televisão, jantavam acomodados na única mesa da casa, essa serviçal disposta ao lado do armário de mantimentos. Sem perceberem, o dito móvel das refeições cotidianas, coisa de um mês, começou a murmurar. Não com palavras, claro, mas com rangidos e suspiros que só os ouvidos atentos tinham o condão de decifrar. Na verdade, o clamor vinha de lamentos antigos abafados por anos de rotinas empilhadas em conversas cruzadas suportadas por cotovelos de braços impacientes e mãos insuportáveis. Mas alto lá: quem eram os autores dessas chorumelas?

— Estamos exaustos — berravam constantemente os pés da mesa, em uníssono, como se tivessem ensaiado aquele protesto por décadas. Longe de brincadeiras, as ladainhas aconteciam de verdade. Os quatro pés firmes de madeira nobre, bem gastos nas pontas, riscados pelas aventuras de cadeiras inquietas e visitas desastradas, sentiam o peso dos anos. Eles não aguentavam mais sustentar o mundo sem estilo. Queriam sapatos. Sim, sapatos! De verniz, de couro, talvez até com cadarços dourados. Não por vaidade, embora um pouco de elegância não fizesse mal — mas por uma gota de dignidade.

— Olhem para os humanos! — Resmungava o pé do canto esquerdo, tido pelos demais como o maior criador de casos. Reparem: — Eles trocam de calçados conforme o humor com o qual acordam. Há tênis de marcas para correr, saltos altos para impressionar, chinelos para descansar. E nós? Pombas! Sempre nus e esquecidos.

A mesa, que até então se mantinha neutra, começou a simpatizar com os lamentos. Afinal, ela também sentia nos costados o peso das indiferenças de seus patrões. A criatura não se fazia mais o centro das atenções. De repente, sem aviso prévio, o breakfast passou a ser servido no quintal, debaixo de um abacateiro e nos sábados e domingos, todas as refeições migraram para um sofá abandonado num puxadinho que seu Chuchando mandara erguer para desafogar a cozinha. Como não fosse pouco, os encontros para as “tagarelações” aos celulares com os filhos e netos distanciados, ganharam espaços no banheiro e no quarto. Em vista disso, os pés da mesa, coitados, continuavam ali, firmes, silenciosos e invisíveis.

Foi numa manhã de sábado, que dona Bundergundes percebeu algo estranho. Um dos pés da mesa estava envolto num pano vermelho amarrado com fita. O outro ao lado calçava uma meia de lã improvisada. E os demais, sem fugirem à regra, se apresentavam cobertos com sacolas plásticas, como quem tentava se proteger de uma chuva caída sem prévio aviso.

— O, que está acontecendo aqui? — perguntou incrédula, dona Bundergundes entre o espanto da descoberta e a risada sem graça.
Os pés da mesa, obviamente, não responderam. Apenas se mantiveram imóveis, como quem diz: “Se não nos dão sapatos, faremos os nossos.”

A partir daí esses membros inferiores ganharam um novo ritual. A cada início de semana, os suportes recebiam novos “modelos”: botas no inverno, sandálias no verão, e até pantufas nos dias de preguiça. A mesa, orgulhosa, voltou a ser o centro das atenções. E os pés? Ah, eles caminhavam. Agora com estilo aristocrático, mesmo sem saírem do lugar.

Desde que os pernames da superfície plana destinada às refeições ganharam seus primeiros “sapatos”, algo esquisito começou a acontecer em toda parte. O casal, que saía cedo para trabalhar e voltava depois do sol ter se despedido, passou a notar uma inquietação doméstica que não sabiam explicar.

A mesa, antes imóvel e obediente, do nada, começou a aparecer em lugares inusitados. Ora estava no quintal, sob o sol tímido da manhã, ora sob os calcanhares do abacateiro, como quem tomava café com os passarinhos e os pombos. Vez outra, surgia na sala, virada de lado, como se dançasse uma romântica canção antiga do Roberto Carlos com a estante de livros sendo aplaudidos pela televisão e pelo aparelho de som. E, em dias mais ousados, a danada ocupava o corredor de acesso aos quartos, bloqueando o caminho como se implorasse por uma atenção mais significativa.

— Você moveu a mesa para o quintal? — Indagou certa noite dona Bundergundes, com o avental branco de trabalho ainda nas mãos.
— Claro que não — respondeu o marido. — Achei tivesse sido você! — Respondeu o consorte se livrando dos sapatos, o rosto desconfiado.
O mais intrigante. Não havia marcas de arrastos. Nenhum barulho durante o dia captado pelos vizinhos. Nenhum sinal de invasão. Apenas a mesa, com seus pés calçados e uma postura orgulhosa, mudando de lugar como quem buscasse novos horizontes.

O casal começou a congeminar. Primeiro, pensaram na Nair, a empregada de trinta anos que vinha todas as quintas. Depois, em algum tipo de brincadeira do destino. Mas a verdade se fazia mais simples e absurda: os pés da velha mesa haviam descoberto os prazeres de caminharem.

Sim, marcharem! Com seus sapatos improvisados, os pés se sentiam livres, finalmente capazes de explorarem os cômodos que por anos só haviam observado de longe. O corredor, com sua luz suave da manhã, servia como uma espécie de “ser perfeito” para meditação. A sala com seus tapetes macios, ofereciam confortos. E o quintal... Mãe Santíssima, o quintal! Esse se afigurava como um parque para móveis com almas irrequietas e aprisionadas.

A mesa não queria fugir. Apenas viver. Carecia de se mover, de se reinventar... se posicionar onde fosse mais feliz. E os donos da casa, depois de muito coçarem as pulgas inexistentes atrás das orelhas, passaram a aceitar. Afinal, se até os móveis tinham desejos; quem seriam eles para impedirem?

Hoje, a mesa tem um calendário próprio. Nas segundas é dia de quintal. Terça, a sala. Quarta, o corredor. Quinta, cozinha. Sexta, descanso debaixo do abacateiro. E nos fins de semana, ela escolhe. Às vezes, até recebe visitas. Mas que visitas? Não outro senão o Capacho da entrada que inúmeras vezes demonstrou interesse em experimentar um par de tênis.

E assim, naquela casa onde tudo parecia comum, os móveis começaram a perambular. E o casal Bundergundes e Chuchando, finalmente aprenderam a escutar os passos silenciosos daquilo que sustentavam as suas vidas — literalmente.

Coisa de um mês depois, caia uma tarde meiga e silenciosa, daquelas em que o sol entra pelas janelas e os móveis parecem cochichar entre si. A mesa, recém-saída de uma caminhada pelo corredor, parou diante da geladeira e do aspirador de pó, que descansavam encostados nas abas do fogão.

Mesa (com seus pés calçados de pantufas floridas):
— Ah, nada como esticar os cambitos depois de uma manhã no quintal. O cheiro de grama combina com madeira, sabiam?
Geladeira (com um ronco gelado e tom amargo):
— Que sorte a sua. Eu estou aqui há pelo menos uns doze anos. Doze, compreende? Sem mover um centímetro. Nem uma voltinha para ir ao banheiro tirar a água acumulada em meu congelador. Só comida e bebida entre outras guloseimas entrando e saindo. E dona Bundergundes batendo a porta como se eu fosse um cacareco qualquer.
Aspirador (com voz metálica e um leve sotaque de motor elétrico):
— Eu até me movo, mas só quando sou convocado pela gostosa da menina Nair. Nunca por vontade própria. Sempre correndo atrás de sujeira, como se minha existência fosse um eterno castigo. E quando termino, ela me joga num canto escuro. Sem nem um “muito obrigado”.

Mesa (se balançando levemente orgulhosa):
— Vocês precisam se rebelar. Os sapatos mudaram a minha vida. Agora caminho. Minhas pernas escolhem onde eu quero e elas igualmente, almejam estar. Ontem, tirei um ronco na sala. Minutos atrás, voltei da varanda. Amanhã? Talvez aqui na cozinha junto com vocês. Quem sabe até me deleite, logo à tarde, jogando conversa fora com os passarinhos!
Geladeira (com um suspiro gelado):
— Sapatos não resolveriam meu problema. Eu sou ligada à minha irmã tomada. Estou presa por um fio. Como essas siamesas. Minha liberdade termina onde começa o cabo.
Aspirador (com um chiado melancólico):
— Eu também não tenho vida própria. Sou escravo do botão. Só existo quando a beldade da Nair me liga. Fora isso, sou apenas... um cilindro com saudades de ser útil.

Mesa (com compaixão):
— Talvez vocês não possam andar como eu, mas podem sonhar. Geladeira, feche os olhos, e se imagine num “food truck,” rodando pela pracinha. Aspirador, pense em ser um drone de limpeza, voando pelos tetos dessas casas e de outras mansões ao nosso derredor...
Geladeira (com um brilho nos LEDs):
— Um “food truck...” com rodas cromadas e adesivos coloridos. Servindo “smoothies” em frente à porta da igreja do padre Quevedo...
Aspirador (com um zumbido animado):
— E eu, voando sobre um tapete persa, limpando poeira com estilo. Talvez até com óculos escuros, tipo o Zezé Di Camargo!
Mesa (rindo com seus pés batendo no chão):
— Viu? A liberdade começa na imaginação. E quem sabe, um dia, vocês também ganhem seus sapatos!

Naquele instante, o sol se moveu um pouco mais iluminando a todos. E por um breve momento mágico, os espaços da moradia pareceram respirar um ar diferente — como se os objetos estivessem realmente vivos, sonhando com o impossível.

Entretanto, nada dura para sempre. Numa sexta-feira, por volta das quatro da tarde, dona Bundergundes cansada da rotina, decidiu pedir a sua chefe e voltar mais cedo. Queria um banho demorado, talvez um chá com bolachas, e quem sabe, até reorganizar os seus vestidos e saias no guarda-roupas, — bem ainda as calças, os lenços e as cuecas do seu marido. Enfim, se saciar em pequenos prazeres de quem vive entre compromissos e correrias. Ao abrir a porta da sala, não encontrou o habitual. Ouviu vozes. Ou melhor, uma voz. Grave, rouca, com um sotaque de madeira antiga. Vinha do puxadinho colado à cozinha. Foi aí que viu, ou melhor, não só viu, ouviu um dos pés da mesa fazendo uma declaração de amor à enceradeira.
— “Arno, desde que te vi encostada naquele canto, meu coração de mogno não soube mais descansar. És o motor barulhento que agita minha alma. Seu nome, minha linda Arno, aí... ui... me conecta ao sentido da vida...”

A pobre mulher estancou os olhos arregalados. Ficou aturdida e desqueixolada, meio amedrontada e fora de si. Seu corpo inteiro congelou. Não era possível. Um dos pés da mesa — o do canto direito, o mais romântico — estava fazendo uma declaração de amor à sua enceradeira. E a sem vergonha, se fingindo de tímida, se abria como mala velha, ao tempo em que emitia uma espécie de som romanticamente glamoroso que parecia corresponder. Perplexa, aliás, fora de si, Bundergundes cambaleou. Tentou entender. Tentou negar, rir e chorar. Pensou dar meia volta e ganhar a calçada. Todavia, o absurdo daquela cena se fazia demais para seu estado de espírito cansado em face da surpresa presenciada. Uma reviravolta atrelada a uma cena de tom surreal e tragicômico tomou conta de tudo, como se o cotidiano tivesse sido invadido por um delírio doméstico de proporções gigantescas. E era. Todo o desenrolar da história com esse inesperado e tétrico acontecimento, levou a pobre mulher ao desespero. 

Nessa hora, o inevitável. Foi acometida por um ataque fulminante e veio a óbito. Caiu ali mesmo, entre o tapete e a estante, com os olhos ainda arregalados de incredulidade. Quando seu marido Chuchando chegou, coisa de uma hora e pouco depois, se deparou com a sua esposa estirada no chão. O mais incrível: a mesa, com seus pés enlaçados em fita de cetim, sorria para a enceradeira emitindo um zumbido triste, como quem lamenta um amor interrompido. O homem não perdeu tempo. Chamou a ambulância. Berrou os vizinhos. Ligou para o padre Quevedo. Mas ninguém soube explicar. A perícia registrou “causa indeterminada”. O legista anotou “choque emocional”. E o infeliz do Chuchando, embora devastado, e diante da companheira morta, passou a desconfiar que a casa guardava segredos demais.

O tempo seguiu adiante. Desde então, a mesa não se moveu mais. Seus pés, antes inquietos, permaneceram imóveis, como quem faz um luto forçado. A enceradeira foi guardada junto com o aspirador de pó no banheiro, longe dos olhos e dos sentimentos. E a casa, abrandada de som, pareceu esperar por um novo dia em que algum outro ser vivente, talvez os filhos de Bundergundes, por milagre escutassem de novo os móveis. Afinal, quem disse que o amor não pode surgir entre um pé de madeira e um eletrodoméstico? E quem garante que o coração humano não está preparado para ouvir o que não deveria ficar calado? Desde então, naquela casa antes tranquila, onde o tempo parecia andar de pantufas, a mesa das refeições não mais deu sinais de vida. Vez em quando, seus pés, gastos e silenciosos, rangem com uma frequência, mais branda, como se estivessem tentando dizer alguma coisa. De fato, estavam. Belo dia, a Nair chegou mais cedo para o trabalho. 

Ao entrar, percebeu algo meio destoado do rotineiro: a mesa não estava no lugar de sempre. Se fazia no corredor, virada de lado, como quem se esconde ou se exibe. Achou fora de propósito, mas não deu muita importância. Pensou que o seu Chuchando talvez tivesse feito alguma mudança. Nos dias seguintes, a mesa apareceu no quintal, depois na cozinha, e até na entrada do banheiro. Sempre em silêncio, e sem barulho aparente.
— Será que temos um fantasma metido a engraçadinho? — gracejou rindo sozinha.

Até que ouviu um chiado vindo da sala. Era o aspirador de pó, encostado num canto, emitindo um som suave. E, para sua estupefação, um dos pés da mesa parecia inclinar-se levemente em direção a ele, como quem puxasse conversa. Não houve palavras, claro. Mas naquele instante, a empregada sentiu um embaraço, ou melhor, uma certeza de que os móveis, todos eles, estavam vivos. Não no sentido literal — mas como se tivessem vontades, preferências e até afetos. Se manteve calada. Não contou a ninguém. Apenas passou a observar mais. E, curiosamente, a casa ficou leve. A mesa continuou seus passeios, o aspirador parecia cada dia mais feliz, e até a geladeira, imóvel como sempre, ganhou um ímã novo com a frase: “A vida é movimento, mesmo quando se está parado.” 

Desde então, Nair passou a escrever num caderno o que via e presenciava sobre os objetos da casa. E quem as lia, achava graça. Alguns até disseram que ela tinha uma imaginação fértil demais. Mas Nair sabe: às vezes, basta escutar com atenção para perceber que até os móveis por mais inanimados que pareçam, têm histórias para contar. Seis meses após o falecimento de dona Bundergundes, seu Chuchando fez um convite à empregada e ela, de pronto, aceitou. Passou a morar de vez, com seu antigo patrão e foram felizes para sempre. Quem, hoje, tentar separa-los, terá o mesmo destino de Milo. (*)

Uma breve explicação necessária: a literatura, especialmente a crônica — é feita para provocar sorrisos, reflexões e, às vezes, até um leve desconcerto. É esse tempero que transforma um texto comum em algo memorável. Acredito ter conseguido isso com uma mesa com pés implorando por sapatos, uma enceradeira tímida, um aspirador carente e uma geladeira ressentida. Penso mais: me imagino sendo uma espécie de Leon Eliachar doméstico, em versão de loucuras e bizarrices de quem não tem realmente o que fazer.

(*) Atleta grego que, ao tentar rachar uma árvore ao meio, ficou nela entalado, tendo sido devorado pelos lobos.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Bom Jesus dos Perdões, interior de São Paulo, 22-8-2025

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