terça-feira, 11 de novembro de 2025

[Aparecido rasga o verbo] Provocado

Aparecido Raimundo de Souza

BENDE SANDE entrou na loja de departamentos pisando forte, como quem penetra autoritário, na própria casa, carregando, com ambas as mãos, uma caixa enorme contendo um aparelho de som que havia comprado. Procurou pela jovem simpática que o atendeu da primeira vez, mas não a viu em parte alguma. Outra moça se aproximou solícita, sorriso aberto de canto a canto do rosto.


— Pois não, senhor? Posso ajudá-lo?
— Estou à cata da vendedora Dosolina.
— Que pena! A senhorita Dosolina Piroga está em horário de almoço. Posso lhe ser útil?
— De repente... é o seguinte: Como é seu nome?
— Bonifácia...
— Pois, então, Bonifácia. Comprei aqui, este som com a senhorita Dosolina Piroca...
— Piroga, senhor, Piroga.
— Desculpe. Entendi mal. Como ia falando, comprei com ela este som e fui direto para casa. Era aniversário de minha filha e queria fazer surpresa. Acontece que na hora de botar para funcionar, nada.

— O senhor ligou corretamente?
— Sem sombra de dúvida.
— Chegou a ler o manual?
— De cabo a rabo.
— Que defeito ele apresentou?
— O manual?
— Não, senhor. O aparelho.
— Simplesmente não quis nada com o trabalho...

— O senhor usou alguma tomada suspeita?
— Se você me explicar o que é uma tomada suspeita.
— Chamamos de tomada suspeita aquela não conectada aos padrões normais. Fios soltos, gatos, ou terminais que suportam acúmulos de aparelhos ligados ao mesmo tempo, como geladeira, fogão, forno de micro-ondas, ventilador, carregador de celular, computador...
— Já entendi. A tomada está dentro das especificações corretas.
— Faça o favor de aguardar um segundo. Vou ver com meu gerente.

Bonifácia voltou trinta minutos depois (o equivalente a um segundo no relógio dela) com um rapaz mediano de estatura, cara escanhoada e redonda, cabelo partido ao meio. Lembrava um filhote assustado de Lêmure Aye-aye, de pelos negros e olhos esbugalhados, desses só encontrados em florestas de Madagascar.
— Pois não, senhor?
— Qual sua graça?
— Zélio Tocafundo Patuá, as suas ordens. Sou o gerente.
— Perfeito, seu Zélio. Como falei com a Bonicrácia, comprei aqui, este três em um e fui direto para casa. Era aniversário de minha filha e queria fazer surpresa. Na hora do vamos ver, nada.

— Entendo! Só quero lhe chamar a atenção para um pequeno detalhe, antes de continuarmos. Esta jovem aqui se chama Bonifácia. Pois bem! O senhor fez todos os procedimentos corretos?
— Acabei de explicar em detalhes à sua funcionária.
— Ok. Sua rede é 110 ou 220?
— 110.
— O senhor chegou a ler o manual?
— De capa a capa.
— Qual a vendedora que o atendeu?
— Uma tal de Dosolina.

— Sei. É uma de nossas melhores vendedoras. A senhorita Piroga está em horário de almoço. Me diga uma coisa, por favor: no instante em que o som foi testado aqui na loja, ou seja, no momento em que o senhor se dirigiu ao segundo andar, na “seção de pacotes” para receber o aparelho, notou alguma coisa errada?
— Nada, tudo normal. Sem problemas.
— O senhor se recorda se na hora do teste o rapaz fez alguma observação?
— Nenhuma, que me lembre.
— Ao chegar em casa o senhor atentou para a voltagem do aparelho?

— Amigo, o rapaz que testou deixou no jeito.
— Bem, nesse caso, sua tomada deve estar com defeito.
— Não está, não. São todas novas. Mudei para um apartamento zero bala não tem dez dias. Peguei as chaves e a primeira coisa que fiz antes de levar a família, cachorro, periquito, papagaio, foi verificar se a parte elétrica estava nos conformes. Aliás, meu prezado, agi assim porque sou perfeccionista. Nem precisava me dar a esse incômodo. Sou o primeiro morador. O prédio é recém-construído e a construtora acabou de entregar.

— Vou pedir que o senhor tenha um pouquinho mais de paciência. Solicitarei ao encarregado da entrega dos produtos que são vendidos para que faça um novo teste. Se me permite, levarei o aparelho comigo. Cinco minutos, não mais...
Esse “não mais” durou exatamente uma hora e meia.

Retornou o gerente, com o aparelho e a Bonifácia à tiracolo.
— E então...?
— O senhor tem toda razão. Realmente o aparelho não funciona...
— Tudo bem, seu Nélio. Troque por outro e fim de papo.
— Zélio, senhor. Meu nome é Zélio. Como ia dizendo, infelizmente não podemos. O senhor terá que levá-lo na autorizada.

— Amigo esse aparelho saiu daqui apresentando o defeito que o senhor mesmo mandou seu funcionário verificar. Não sou o responsável por ele, nem lhe dei causa. Exijo que troque por outro igual e fim de papo.
— Cavalheiro, seu caso, agora, não é mais com a gente.
— A Dosofina me falou que se houvesse algum imprevisto era só vir aqui e procurar por ela.

— Compreendo. O senhor está coberto de razão. Contudo, a Dosolina e não Dosofina também não poderá fazer nada. É norma da matriz. Temos que acatar. No seu caso, só a autorizada. A propósito: o senhor fez a garantia estendida?
— Não. O que vem a ser isso?
— Quando o senhor adquire uma mercadoria, especificamente um eletroeletrônico, deve fazer imediatamente a garantia estendida. Acontecendo qualquer coisa de errado, como de fato estamos nos deparando agora... A garantia estendida...

— Meu prezado Célio, me ajude a juntar alguns pontos soltos...
— Zélio, senhor. Zélio. Que pontos soltos?!
— Vocês fazem propaganda enganosa na televisão, ludibriam a boa-fé dos clientes, sacaneiam os compradores como bem querem, e, agora, simplesmente vem aqui me dizer, quase duas horas de espera, que não podem trocar um aparelho, por outro, porque é norma da matriz? E ainda, para completar, tem a cara de pau de acrescentar essa balela de garantia estendida?

— Cavalheiro, não fazemos propaganda enganosa, não ludibriamos ninguém, tampouco a boa-fé das pessoas, menos ainda sacaneamos quem quer que seja. Nossa empresa é séria e está no mercado há mais de vinte anos. No seu caso, voltando a ele e ao seu três em um, nada podemos fazer porque o senhor não optou pela garantia estendida.
— E se na hora que esse seu funcionário estivesse testando a porcaria, essa merda não ligasse, que atitude vocês tomariam?
— Substituiríamos imediatamente o aparelho por outro...

— Substitua e ficaremos todos em paz!
— O senhor já saiu da loja.
— Fui direto para minha casa. O aparelho, como vocês estão vendo, voltou do mesmo jeito que saiu daqui.
— Concordo com o cavalheiro. Só há um problema. O troço não está funcionando. Quando o senhor saiu com ele daqui três dias atrás, estava em perfeitas condições de uso.

— Tudo bem, tudo bem. Meu amigo Crélio, eu cheguei em casa e ele deu pau. O que fiz foi embalar de novo, do jeitinho que estava e voltar no mesmo passo. É difícil entender? Quer que eu desenhe?
— Cavalheiro, por favor, isso já está me irritando. Meu nome é Zélio. Zélio. Olhe meu crachá. Zélio Tocafundo Patuá. Pois é, como eu já lhe passei e volto a repetir. O senhor está coberto de razão. Tem direito de reclamar, de brigar, de perder as estribeiras, mas neste caso, sinto muito, só a autorizada...

— Meu amigo entenda. Não estou lhe pedindo nenhum favor. Apenas exigindo o que está no Código de Defesa do Consumidor. É meu direito. Comprei essa droga em quinze vezes, sem entrada. O que acontece se eu resolver não pagar?
— Seu nome, senhor, será incluído no SPC.
— Vocês ainda têm o direito de sujar o único bem que prezo acima de qualquer coisa?

— Quando o senhor concretizou a compra, com a nossa vendedora Dosolina, assinou um contrato. São as normas estabelecidas nele que nos apresenta várias opções, uma delas, enviar seu nome aos órgãos que cuidam das “fichas sujas”. Desta forma, se o senhor não honrar o que acordou...
— Eu honro, e vocês? Diga seu Paramélio. Custa trocar esta porra?

O gerente Zélio fez um longo gesto de condescendência tentando acalmar os ânimos, apesar de estar pisando em ovos. O cliente, pela milésima vez, pronunciava seu nome de forma errada. Bonifácia também percebeu essa saia justa de seu superior e sugeriu um cafezinho para serenar os vapores de uma possível combustão que de espontânea, sinalizava acabar numa balbúrdia iminente.
— É complicado. Embaraçoso, admito, mas a loja nada pode fazer pelo senhor...
— Nada?
— Nada. Só a autorizada. Repetindo, se o senhor tivesse concordado com a garantia estendida...

— Percebeu que neste país a corda rebenta sempre para o lado dos mais fracos? No caso eu sou essa parte fragilizada. Venho aqui nesta espelunca, adquiro um aparelho com vocês, pago, por ele, o olho da cara... praticamente me atiro, de cabeça, às cegas, num juro do caralho, a peça comprada apresenta um defeito, volto aqui dentro do tríduo legal e vocês não podem fazer nada?

Começou a juntar gente. Pessoas que estavam no interior e em outras seções se aproximaram para bisbilhotar. Celulares foram ligados. Num piscar de olhos se fazia impossível mensurar o número de clientes filmando toda a baixaria.
— Trouxe o carnê, a nota fiscal, tudo como manda o figurino e a loja simplesmente me diz que não pode fazer nada?
— Gostaríamos de estar resolvendo sua situação a contento, mas repito, diante dessas circunstâncias, a empresa não arca com nenhuma responsabilidade, mau uso, ligações fora dos padrões da companhia de eletricidade...

Bende Sande, em vista desse desfecho, perdeu de vez as estribeiras, a compostura e o bom senso. A sua brutalidade adormecida, em questão de segundos aflorou. E foi com essa altanaria à flor da pele, que o sujeito partiu para o tudo ou nada. Levantou bem os braços para que todos pudessem vê-lo e ouvi-lo. Gritou alto, forte, imponente, cabeça ereta:
— Vocês não arcam com nenhuma responsabilidade? Como se eu fosse um Mané, me chamam de mentiroso, alegando que fiz uso indevido? Tentam me convencer que liguei essa geringonça errada e terminam dizendo que se eu não pagar meu nome irá parar no rol dos caloteiros? Pois vou mostrar, para o senhor, seu Cornélio, gerentezinho filho de uma puta, o que é que eu faço com esta droga.

Passou a mão no aparelho e, inopinadamente, num repelão, o arremessou contra uma dezena de televisores ligados em exposição.

Houve pequenas explosões em cadeia, seguida de um curto circuito e princípio de incêndio, o que culminou num blecaute inesperado. Esse episódio colocou a galera que assistia a confusão de camarote em debandada. Não contente, Bende foi em frente. Chutou prateleiras e derrubou uma série de objetos que serviam de mostruário para promoção. A loja, com esse ataque, entrou em estado desesperador. Quando as luzes foram restabelecidas, deu para se perceber que nada restou inteiro para contar a história. Tudo havia virado um caos, como em uma praça de guerra. 

Era gente correndo às cegas, tropeçando aqui e acolá, num verdadeiro deus-nos-acuda. A segurança do shopping foi acionada, a polícia requisitada. Uma ambulância, uma guarnição do corpo de bombeiros e até soldados do batalhão de choque marcaram presença. Sem falar na imprensa local (rádio e televisão), que acorreu também para transmitir a balbúrdia ao vivo e a cores. De Bende Sande, entretanto, de Bende Sande, nem rastro.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 11-11-2025

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