Aleksandr Soljenítsin
(…)À noite faziam razias na
aldeia próxima, ora roubavam uma panela, ora, quebrando a fechadura de uma
despensa, roubavam farinha, sal, um machado, loiça. (Um fugitivo, tal como um
guerrilheiro, no meio da vida pacífica depressa se torna inevitavelmente um ladrão…)
De uma vez levaram da aldeia
uma vaca, que mataram na floresta. Mas então nevou e, para não deixar rastos,
tiveram de ficar retidos no abrigo. Mal Kudla tinha saído para apanhar uns
gravetos, foi avistado por um guarda florestal, que começou logo a disparar.
“São vocês os ladrões? Roubaram a vaca?”
Perto do abrigo foram
encontrados vestígios de sangue. Levaram-nos para a aldeia, fecharam-nos a
cadeado. O povo gritava: é matá-los já sem piedade!
Mas o comissário do distrito
chegou com uma ficha de busca de toda a União (soviética) e declarou aos
aldeões: “Muito bem! Vocês não capturaram ladrões, mas grandes bandidos
políticos!”
E tudo mudou. Já ninguém
gritava. O dono da vaca – que era afinal um checheno – levou aos detidos pão,
carne de carneiro e até dinheiro, reunido pelos chechenos. “Ah – dizia ele – tu
devias ter vindo ter comigo, dizer quem eras e eu mesmo te dava
tudo!...” (Disto pode-se não duvidar, é próprio dos chechenos.) E Kudla começou
a chorar. Depois de tantos anos de crueldade, o coração não resiste à
compaixão.
Levaram os presos para
Kustanai, na cela de detenção preventiva KPZ da estação, não só lhes tiraram
(para si próprios) tudo o que os chechenos lhes haviam dado, como não lhes deram
nada para comer!
Antes de os expedirem,
fizeram-nos ajoelhar na gare da estação de Kustanai, algemaram-lhes as mãos
atrás das costas, e assim os mantiveram, à vista de toda a gente.
Se isto fosse numa plataforma de Moscovo, Leninegrado, Kiev, ou em qualquer outra cidade confortável, toda a gente passaria ao lado deste velho de cabelos grisalhos, ajoelhado e algemado, como que saído de um quadro de Répin, sem reparar nele, sem se voltar para ele – colaboradores das editoras de literatura, realizadores de cinema de vanguarda, conferencistas sobre humanismo, oficiais do exército, para já não falar dos funcionários dos sindicatos e do partido.
E todos os cidadãos comuns,
que em nada se distinguem, que não ocupam cargos, também procurariam passar sem
notar nada, para que a escolta não lhes perguntasse e anotasse os nomes –
porque tu tens autorização de residência EM Moscovo, não podes correr riscos…
Mas os habitantes de Kustanai
tinham pouco a perder, ali todos eram malditos, ou marcados, ou deportados.
Começaram a se concentrar perto dos detidos, a atirar-lhes tabaco, cigarros,
pão.
Kudla tinha as mãos algemadas
atrás das costas, e se debruçou para apanhar o pão do chão com a boca, mas um
homem da escolta tirou-lhe o pão da boca com um pé.
Kudla rodou sobre si mesmo e,
de novo, se arrastou para morder o pão – então o da escolta afastou o pão com
um pontapé!
(Vocês, cineastas de
vanguarda, recordam talvez a cena com aquele velho?)
O povo
começou a se aproximar mais e a fazer barulho:
“Soltem-nos! Soltem-nos!”
Veio uma patrulha da milícia, mais forte do que o povo, e fê-lo dispersar.
Chegou um comboio, os fugitivos foram embarcados com destino à
prisão de Kenguir.
Texto: Aleksandr Soljenítsin, in “O Arquipélago Gulag”, páginas 463 e 464; Digitação: JP, 16-12-2025
Brasileiro, lembra de algo parecido, nos últimos seis anos?
Relacionados:“A escolta abre fogo sem aviso!”
“Trouxeram os fascistas! Trouxeram os fascistas!”
“Prometo a este fogo e prometo-te a ti, menina: todo o mundo irá saber disto.”
Começou em 1918, na URSS-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas…
[Livros & Leituras] O Arquipélago Gulag
Discurso de Alexander Soljenítsin em Harvard em 8 de junho de 1978
[Debates & Pesquisas] Você leu “O Arquipélago Gulag”?
"Arquipélago Gulag", de Aleksandr Solzhenitsyn, é uma obra-prima que escancara o horror produzido pelo comunismo
Lênin, Stálin e Hitler – A era da catástrofe social
Pedagogia do oprimido
Holodomor: 90 ans après, un génocide toujours tabou pour une partie de la gauche française
Os limites democráticos
Holodomor: "The Holocaust the New York Times ignored" (+ “Harvest of Despair”)
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