terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Fugas com moral e fugas com engenharia

Aleksandr Soljenítsin

(…)

À noite faziam razias na aldeia próxima, ora roubavam uma panela, ora, quebrando a fechadura de uma despensa, roubavam farinha, sal, um machado, loiça. (Um fugitivo, tal como um guerrilheiro, no meio da vida pacífica depressa se torna inevitavelmente um ladrão…)

De uma vez levaram da aldeia uma vaca, que mataram na floresta. Mas então nevou e, para não deixar rastos, tiveram de ficar retidos no abrigo. Mal Kudla tinha saído para apanhar uns gravetos, foi avistado por um guarda florestal, que começou logo a disparar. “São vocês os ladrões? Roubaram a vaca?”

Perto do abrigo foram encontrados vestígios de sangue. Levaram-nos para a aldeia, fecharam-nos a cadeado. O povo gritava: é matá-los já sem piedade!

Mas o comissário do distrito chegou com uma ficha de busca de toda a União (soviética) e declarou aos aldeões: “Muito bem! Vocês não capturaram ladrões, mas grandes bandidos políticos!”

E tudo mudou. Já ninguém gritava. O dono da vaca – que era afinal um checheno – levou aos detidos pão, carne de carneiro e até dinheiro, reunido pelos chechenos. “Ah – dizia ele – tu devias ter vindo ter comigo, dizer quem eras e eu mesmo te dava tudo!...” (Disto pode-se não duvidar, é próprio dos chechenos.) E Kudla começou a chorar. Depois de tantos anos de crueldade, o coração não resiste à compaixão.

Levaram os presos para Kustanai, na cela de detenção preventiva KPZ da estação, não só lhes tiraram (para si próprios) tudo o que os chechenos lhes haviam dado, como não lhes deram nada para comer!

Antes de os expedirem, fizeram-nos ajoelhar na gare da estação de Kustanai, algemaram-lhes as mãos atrás das costas, e assim os mantiveram, à vista de toda a gente.

Se isto fosse numa plataforma de Moscovo, Leninegrado, Kiev, ou em qualquer outra cidade confortável, toda a gente passaria ao lado deste velho de cabelos grisalhos, ajoelhado e algemado, como que saído de um quadro de Répin, sem reparar nele, sem se voltar para ele – colaboradores das editoras de literatura, realizadores de cinema de vanguarda, conferencistas sobre humanismo, oficiais do exército, para já não falar dos funcionários dos sindicatos e do partido.

E todos os cidadãos comuns, que em nada se distinguem, que não ocupam cargos, também procurariam passar sem notar nada, para que a escolta não lhes perguntasse e anotasse os nomes – porque tu tens autorização de residência EM Moscovo, não podes correr riscos…

Mas os habitantes de Kustanai tinham pouco a perder, ali todos eram malditos, ou marcados, ou deportados. Começaram a se concentrar perto dos detidos, a atirar-lhes tabaco, cigarros, pão.

Kudla tinha as mãos algemadas atrás das costas, e se debruçou para apanhar o pão do chão com a boca, mas um homem da escolta tirou-lhe o pão da boca com um pé.

Kudla rodou sobre si mesmo e, de novo, se arrastou para morder o pão – então o da escolta afastou o pão com um pontapé!

(Vocês, cineastas de vanguarda, recordam talvez a cena com aquele velho?)

O povo começou a se aproximar mais e a fazer barulho:

“Soltem-nos! Soltem-nos!”

Veio uma patrulha da milícia, mais forte do que o povo, e fê-lo dispersar.

Chegou um comboio, os fugitivos foram embarcados com destino à prisão de Kenguir.

Texto: Aleksandr Soljenítsin, in “O Arquipélago Gulag”, páginas 463 e 464; Digitação: JP, 16-12-2025 

Brasileiro, lembra de algo parecido, nos últimos seis anos? 

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