António Ribeiro (O cão de Sócrates)
De semana para semana parece que tudo se agravava para o meu dono. O desemprego atingia o número de 558 mil pessoas, a falência de pequenas e médias empresas não parava de aumentar, o número de famílias endividadas subia rapidamente, o cerco dos mercados financeiros ia-se apertando, o FMI estava à porta e tínhamos perdido a candidatura conjunta com a Espanha para a realização do Mundial 2018, a única esperança que restava ao meu dono para largar dinheiro para obras que se vissem. O sr. Primeiro-ministro estava a ficar tão isolado que, agora, era ele quem começava a procurar a minha companhia para o confortar nos longos momentos de angústia e solidão do poder. Eu posso ser cão, mas não sou insensível à desgraça dos homens e lá o deixava pegar-me e fazer-me festas. Para mim era, também, uma forma de assegurar a minha presença em São Bento e evitar ser remodelado.
Neste ambiente de grandes e gravíssimos problemas tinha uma curiosidade canina em saber qual deles afetava mais o meu dono. O desemprego? A fuga de uma geração de jovens para o estrangeiro? A entrada do FMI? O fim das pequenas e médias empresas?
Um dia tudo se esclareceu. Encontrei o sr. Primeiro-ministro prostrado a ler um dossiê que os assessores lhe tinham preparado. Pela cara do meu dono – e eu conheço-as todas – o que estava naquele dossiê preocupava-o mais que tudo. Como era costume naqueles dias, ele pegou em mim e pôs-me ao colo: “sabes, cão, estou muito preocupado coma as sondagens! O Passos está à minha frente, pá!”. O meu pêlo eriçou-se instintivamente. No quadro de miséria em que estava o país, ali estava o que mais preocupava o meu dono: as sondagens.
Para mim eram boas notícias. O dr. Passos Coelho era um fervoroso adepto dos animais e dos cães, em particular. Apesar de já ter quatro cadelas não me parecia difícil tentar negociar com ele a minha permanência em São Bento, quando ele aqui chegasse como primeiro-ministro, a troco do meu apoio à sua candidatura através do influente charme que eu tinha junto da comunicação social. Afinal algum dia tinha que pôr a render tudo o que aqui aprendi sobre sobrevivência política com um dos melhores profissionais dos últimos anos em Portugal. E essa capacidade de sobrevivência estava, mais uma vez, a despertar no meu dono. Passada uma fase de desânimo, a casmurrice e a alienação total em relação ao que se passava à sua volta. “Sabes, cão, estas sondagens mostram claramente uma tendência: não é o Passos que está a subir muito, eu é que estou a subir pouco, pá!”.
António Ribeiro, in "O cão de Sócrates", página 143
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