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Roberto Civita durante o
Prêmio Jovens Inspiradores 2012. Foto: Ivan Pacheco
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Conheci Roberto Civita
pessoalmente em 2005, num jantar na casa do cientista político Luiz Felipe
d’Avila, um amigo comum. A VEJA.com só passaria a hospedar o meu blog no ano
seguinte, mas não por iniciativa dele. O convite partiu da direção da revista.
Roberto, constatei, fazia jus à fama: era inteligente, tinha um raciocínio
diabolicamente rápido, antenado com tudo o que acontecia no país e no mundo.
Estava, afinal, diante do criador e do editor da mais importante revista do
país — e de dezenas de outras publicações que fazem a história do jornalismo
brasileiro — e de uma das maiores do mundo. Estava diante também de um grande
empresário, bem-sucedido, independente. Mas me surpreenderam — não que
esperasse o contrário; ocorre que eu não o conhecia pessoalmente — a
generosidade da conversa, o bom humor, a genuína atenção que dispensava à fala
do interlocutor e a indignação serena com as questões públicas que não eram de
seu agrado. E, sim, como qualquer um de nós, tinha as suas utopias.
E esse era um dos aspectos
mais encantadores, acho eu, de sua personalidade, como vim a constatar nas
outras, sei lá, nove ou dez vezes em que conversamos pessoalmente. “Roberto”,
como gostava de ser chamado — sem qualquer outro acréscimo —, era, reitero, uma
das pessoas mais bem informadas que conheci, mas conservava em relação a tudo
uma humilde curiosidade. Ignorasse o interlocutor ser ele o homem que deu forma
a um dos maiores empreendimentos editoriais do país e o timoneiro de um grande
grupo empresarial, cometeria o erro de considerá-lo um ingênuo. E só por isto
seu conhecimento era tão vasto: cultivava a dúvida sistemática, cartesiana, dos
sábios, não o excesso de certeza dos estúpidos. Ela iluminava e fortalecia as
suas convicções.
Trazia sempre num dos bolsos
do paletó uma pequena agenda — não parava de trabalhar. Da conversa com o
interlocutor, surgiam pautas, que ele anotava e passava adiante. Se viravam ou
não reportagens, aí era com os fatos. Também podia ocorrer de alguém citar um
livro que ele não conhecesse e pelo qual se interessasse. Anotava o nome. Em
dezembro de 2011, encontramo-nos na praia para um almoço. Luiz Felipe,
presente, lembrou um texto, que agora me foge, e Roberto meteu a mão no bolso
da bermuda. Tirou a agendinha e anotou. Naquela noite de 2005, passamos boa
parte do tempo conversando sobre… religião! Citei, então, uma passagem de “As
Formas Elementares da Vida Religiosa”, de Durkheim. Ele parou por um tempo e
empregou um adjetivo que usava com certa frequência: “Fascinante!”. E acionou a
sua agenda. Era generoso no elogio, objetivo na crítica e de uma sinceridade às
vezes desconcertante, mas jamais grosseiro, atrabiliário ou ríspido.
No dia 24 do mês que vem, este
blog completa seu sétimo ano hospedado na VEJA.com. Nesse tempo, não tive de
consultar outra instância que não a minha própria consciência — e é fato que
expressei aqui, e na própria revista, opiniões com as quais sei que Roberto não
concordava — sou certamente mais conservador do que ele era — e que também não
coincidem com a linha editorial da própria VEJA. Jamais me chegou nem mesmo um
eco, ainda que distante, que tivesse o ânimo da censura ou da imposição de, sei
lá como chamar, uma “linha justa”. Essas coisas eram estranhas a seu
vocabulário, a seu universo intelectual, a seu entendimento do mundo.
Os perigos da ditadura e os da democracia
Roberto era um homem notavelmente corajoso. Sabia, como todos sabemos, que os riscos existem, mas não acreditava no medo. Assim a VEJA, criada no “annus horribilis” de 1968, enfrentou tanto os perigos da ditadura como, atenção para isto!, os da democracia — porque estes também existem e não são pequenos.
Nas ditaduras, sabemos, os que
se prezam são, muitas vezes, submetidos a uma espécie de servidão involuntária.
Nas democracias, o perigo maior é o da servidão voluntária. A imprensa corre o
risco imenso de, sob o pretexto de “colaborar com o país”, passar a se
confundir com o próprio poder, do qual tem a obrigação de ser uma analista
crítica, independente, imparcial no que concerne às forças políticas em
disputa, mas apegada, sim, a valores. Roberto tinha essa clareza.
Na sexta, comentando a
cobertura que amplos setores da imprensa dispensaram, nos anos recentes, à
política de segurança pública do Rio, escrevi sobre o papel do jornalismo o que
segue em azul. Enquanto escrevia, pensava em Roberto. Retomo depois:
[segundo a visão colaborativa,
engajada] o papel da imprensa seria o de linha auxiliar do estado. Em vez da
crítica, considerada constrangedora, por que não a abordagem senão elogiosa,
mas afirmativa ao menos? Afinal, se todos queremos o bem do Rio, do país, da
humanidade, há de haver entre nós o lugar do consenso. Muita gente, de boa-fé,
sem qualquer ânimo para a censura, reprova o papel da imprensa, que sempre
estaria interessada na má notícia, nos aspectos negativos da realidade, porque,
dizia-se antigamente, quando esta era uma questão pertinente, “vende mais
jornal”. A ilação embutia um pressuposto: o de que o leitor tinha um lado
masoquista — eventualmente sádico no caso de que a má notícia não lhe dissesse
respeito. Participei, há muitos anos, de uma tertúlia profissional, equivocada
desde a convocação, para que se debatesse esse assunto. E se chegou, então, a
uma formulação editorial que vinha até com uma chancela gráfica: “Boa Notícia”.
Vale dizer: incorporava-se como verdade a crítica infundada de que a “má
notícia” era o nosso filão principal e de que seria preciso treinar o olhar
para importunar menos o leitorado, eventualmente as “otoridades”, com assuntos
desagradáveis. É claro que foi um tiro n’água. Os meios estavam errados, e os
meios sempre qualificam os fins.
Um jornalismo que vivesse,
ainda que com bons propósitos, da mera justificação do presente não tardaria a
incorporar, ele mesmo, a lógica do poder. Em vez de exercitar um conjunto de
valores, passaria a ser o administrador de um conjunto de estratégias para,
então, preservar O poder e se conservar NO poder. Não tardaria a considerar que
todos os males do mundo — ou, vá lá, do país — decorreriam do dissenso; da ação
deletéria de pessoas ou grupos que, em vez de colaborar com o bem comum
oficialmente definido, dedicam-se à sabotagem. Não é uma tentação que esteja apenas
na cabeça dos estúpidos e dos venais. Um homem inteligente e inegavelmente
talentoso como Máximo Gorki justificou e aplaudiu todos os crimes de Stálin.
Escreveu um livro exaltando, por exemplo, a construção de Belamor, o canal
entre os mares Báltico e Branco. Foi feito com a mão de obra escrava dos
prisioneiros. Nada menos de 170 mil pessoas! Vinte e cinco mil morreram em um
ano e meio… Gorki acreditava sinceramente no socialismo… A honestidade da
convicção não faz a boa obra. Se o jornalismo abre mão da crítica, contribui
para a esclerose do poder. O consenso é, nas democracias, o que a censura é nas
ditaduras.
Retomo
Almocei com Roberto, pela última vez, há uns sete, oito meses. Ele me chamou justamente para conversar sobre liberdade de imprensa, obrigatoriedade de diploma de jornalista, regulamentação da mídia, essas coisas. E eu então lhe disse a frase que encerra o parágrafo anterior. Anotou. “É muito boa, mas a censura é imposta, o consenso pode ser construído livremente”. Aí conversamos por umas duas horas sobre supostas verdades, que vão se estabelecendo como imperativos pela simples e óbvia razão de que falta coragem para afrontá-los. Assim, também os consensos podem ser impostos pelo espírito do tempo. “Fascinante!”
Roberto viveu uma vida intensa
e se pereniza na obra que deixa, que continuará a render frutos. No post que
traz uma série de vídeos, ele conta como enfrentou a truculência de um estafeta
do poder, que achou que poderia silenciar a VEJA. E ele, então, resume: “Você
não pode aceitar a chantagem. Você não pode aceitar a pressão, a ameaça. Você
tem de continuar fazendo o que você tem de fazer. E é só isto: fazendo uma
grande revista”.
Roberto não morre enquanto
viver a sua obra. Que seja imortal!
Título e Texto: Reinaldo Azevedo, 27-05-2013
Complementares no blog de Reinaldo Azevedo:
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