Aparecido Raimundo de Souza
QUANDO EU
IA EMBORA, ela fazia questão de me trazer até a porta do condomínio. Sua figura
de criança acrescentava à entrada dos prédios, formas novas e coloridas. Dentro
destas formas, conversávamos um pouco, trocávamos risadas e cumplicidades num
espaço que para mim se fazia espantosamente limitado.
Depois eu me despedia e partia. Partia devagar, a
passos curtos, envolto numa espécie de luto onde me considerava um cadáver
ambulante, escarmentado do cotidiano civilizado. Ela, na sua inocência, ficava
parada, estática, me espiando, olhinhos compridos, feito gritos num silêncio
voraz, sem se desviarem do ponto nevrálgico, como se aquela separação doesse em
seu peito de uma maneira estranhamente profunda.
Eu sabia. Tinha certeza de que o seu amor por mim,
indubitavelmente se tornara lendário. Talvez se doesse por dentro, intimamente,
porém, as galas protetoras do seu sentimento de mocinha criada sem pai, e, como
ela não soubesse expressar esta querença de forma plena, e em face da idade, o
Deus Maior lhe colocara, na alma, uma dorzinha branca e branda, suportável,
nascida de dentro das fontes das memórias que lhe envolviam, com a doçura dos
pantanais das eternas quimeras advindas de um leque de sonhos sutis.
Por meu turno, eu não sabia exprimir a minha angústia.
Angústia confrangida, atribulada, que me espedaçava como uma navalha afiada
dentro da própria mortificação que me consumia. Meu descontentamento
triplicava. Separado da mãe dela, eu precisava realmente voltar para casa.
Voltar correndo, desinquieto, aperturado, sufocado, onde outra família me
aguardava. O fato é que esta desunião doía e doía por muito tempo. Recordo
também, que nestas ocasiões, eu tremia na base, todavia, me restituía ao que
precisava ser feito.
E fazia. Dava outro abraço, outro beijo, renovava o
aconchego, a hospedagem daquele momento sublime. Quase perpétuo. Pegava entre
as minhas as suas mãozinhas pequenas, frias e trêmulas num agasalho que a mim
próprio me tirava fora do chão. Lembrava, entretanto, de me pôr a caminho de
novo, minutos depois, quando uma lágrima solitária insistia despencar rosto
abaixo. Eu não podia passar para ela o meu estado de fraqueza, de
aniquilamento. Seria desesperador. Talvez até fatal. Não só isto. Igualmente
não soaria justo.
![]() |
Ilustração: depositphotos |
Ela, por algum motivo inimaginável, insistia,
perseverava, permanecia cravada. Não desgrudava, não entrava. Não me dava às
costas. Parece que adivinhava o que me martirizava. O que me açoitava o
espírito, o que me consumia as entranhas. Talvez imaginasse o que entornava o
caldo, ou quem sabe, tivesse a visão ampla de prever que uma ligação (ou uma
espécie de elo) muito forte atuava entre nós e não deixava o convívio do
insólito se desfazer com a aparente banalidade do cotidiano que intencionava
nos desvirtuar de uma senda previamente traçada.
Em face disto, ela permanecia na porta do
condomínio e ali ficava até eu virar a esquina. Quando então eu sumia do seu
campo ótico, ela corria afoita. Voava ligeira. Como uma sombra, passava por
debaixo das borboletas da guarita do sentinela e ganhava o final da calçada.
Deste ponto, me dava um tchau e jogava um beijo. Um beijo que eu pegava no ar,
esfomeado e audaz, animoso e longanime e guardava dentro do peito como se fosse
uma relíquia preciosa de valor inestimável.
Depois outro beijo e mais outro. Para completar a minha amargura árida,
inabitada, banida e aumentar a minha dor interna, tutelada por um medo visível
e contagioso, e ainda, para pousar a saudade no meio de nosso distanciamento,
como um sofá retrátil dentro de uma piscina, ela desenhava, no ar, com os
dedinhos, em gestos simples, a figura invisível que traduzia o formato de um
coração.
Penso que a nossa disjunção, naquele dado momento,
nada mais significava que duas almas se entrelaçando numa mesma forma
sincronizada de eternas e imorredouras emoções.
Eu ia embora. Precisava ir embora. Tinha que vencer
o “não poder ficar mais”. E ela, valente, não arredava. A impressão que me
passava, era a de que o meu destino se juntava ao dela num amplexo letal. Tudo
isto se constituía no restolho de uma consumação abissal na minha descomedida
vontade de matar o tempo que restava de alguma forma imperdoável. A partir daí
não via mais nada diante de mim. Não enxergava, a não ser o rostinho dela, maculado
pelo divórcio que batia forte e me castigava a alma, deixando todos os meus
pensamentos, todos os meus queixumes e desejos em completo estado de estupor
frangalhado.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De São Paulo, Capital.
29-1-2019
Colunas anteriores:
Uma linda declaração de AMOR! As relações familiares são constelares. E ainda afirmo à você que este AMOR entre PAI e FILHA é para a vida toda e transcende o tempo...
ResponderExcluirDesta vez rasgou o coração.
ResponderExcluirRasgou o coração no BOM SENTIDO! (Obs: Pelo amor de DEUS, heim Aparecido???)
ResponderExcluir