João Carlos Espada
Se a democracia
americana tem sido capaz de assimilar tantas mudanças inesperadas, isso deve-se
a um quadro de tradições estáveis — a Churchilliana “corrente de ouro” — que
permite mudar sem destruir.
Já tudo terá sido dito sobre a semana política que (felizmente já)
passou. De certa forma, ela exprimiu alguns dos mais entediantes traços das
modas culturais que nos rodeiam: o culto das celebridades e da vulgaridade
daquilo que dizem energicamente; o culto da mudança radical e da inovação, da
celebração do futuro em ruptura com o que alcançámos no passado; o culto do
entusiasmo e da exaltação, por contraste com a serenidade, a cortesia e as boas
maneiras.
Isto, creio, é o que pode ser dito educadamente sobre o discurso de
tomada de posse do Presidente Donald Trump. E é também o que pode ser dito
educadamente sobre os discursos das celebridades (e das massas) que desfilaram
contra ele em Washington (e não só) no sábado a seguir à tomada de posse. Seria
uma triste sina ter de escolher entre um estilo e o outro — ambos por sinal
bastante semelhantes, ainda que opostos.
Mas não houve só isso, em Washington, na semana passada. Houve também — e
creio que acima de tudo — a solenidade ancestral da transferência de poderes,
pacífica e cortês, numa das mais antigas democracias do mundo. O Presidente
Trump jurou sobre a Bíblia fidelidade à Constituição americana — tal como
fizeram os seus predecessores desde George Washington.
E, no almoço que se seguiu à cerimónia, revelou ser capaz de estimável
contenção e “fair play”: simplesmente destacou e agradeceu a presença do casal
Clinton.
São estas antigas regras da democracia que permitiram a eleição do
Presidente Trump — que, recorde-se, foi eleito como candidato republicano sem
na verdade ter anteriormente pertencido ao partido republicano e sem nunca ter
desempenhado qualquer cargo político. Foram essas mesmas antigas regras que
permitiram há oito anos a eleição do primeiro presidente negro americano —
menos de duas gerações depois da batalha pela plena universalidade dos direitos
civis na América.
Por outras palavras, se a democracia americana tem sido capaz de
assimilar tantas mudanças inesperadas, isso deve-se a que a mudança ocorre num
quadro de tradições estáveis. Por outras palavras ainda, grandes mudanças são
possíveis na América porque elas não precisam de recorrer à Revolução — ou
àquilo que no continente europeu se designa excentricamente por “mudança de
regime”.
Esta é a benção que distingue as democracias mais antigas. Esta é a
benção que devemos destacar nos tempos conturbados que enfrentamos. E é em
torno dela que devem reunir-se as vozes diferentes, tantas vezes rivais, que em
comum partilham a defesa da tradição ocidental da liberdade sob a lei.
Foi neste sentido um sinal positivo que o Presidente Trump, poucas horas
depois de tomar posse, tivesse voltado a colocar o busto de Winston Churchill
na sala oval. Churchill, cuja mãe era americana, tinha alergia a revoluções e
acreditava que a ausência delas era um dos principais distintivos dos povos de
língua inglesa. Disse ele sobre a filosofia política de seu pai, Lorde Randolph
Churchill:

Numa época em que as modas celebram a inovação e a ruptura, talvez não
fosse pior voltar a cultivar as estáveis tradições — a Churchilliana “corrente
de ouro” — que permitem mudar sem destruir.
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