Alexandre Homem Cristo
O ódio a Trump é novo terreno fértil para
plantar velhas ideias antidemocráticas. Sim, já muita gente leva a sério os
perigos de Trump. Mas ainda pouca gente acordou para os perigos dos seus
inimigos
Começou com a incapacidade de
Hillary Clinton em felicitar Donald Trump na noite eleitoral. Prosseguiu com a
disseminação (da mentira) de que quem votou em Donald Trump foi a América
redneck, desdentada e pouco qualificada. Alastrou-se através da concepção de
uma sociedade dividida entre aqueles que votam “bem” e aqueles que votam “mal”
– como se a escolha de um representante político não fosse um ato de cidadania
livre. Evoluiu com o responsabilizar da Rússia de Putin pela intromissão na
campanha eleitoral, conduzindo Trump à vitória. Agravou-se com tomadas de
posição de políticos que, desgostando de Trump, contestaram a sua legitimidade
– como fez o congressista John Lewis, uma figura histórica da
democracia americana e da luta pelos direitos civis. E, por fim, culminou em
protestos organizados (e por vezes violentos), onde ativistas refutaram o poder
legítimo de Trump, contrastando-o com “a verdadeira maioria” que veio à rua. É
aqui que estamos: há meio mundo disposto a aceitar quase tudo para tirar Donald
Trump da cadeira para a qual foi eleito.
É Trump um fator de
instabilidade para a democracia americana e a ordem mundial? Sem dúvida. Mas,
do outro lado, o que se ergueu não é menos perigoso. Ostracizar parte da
população, empolar manipulações, rejeitar a legitimidade política de quem foi
eleito, liderar massas em protesto contra resultados eleitorais. Isto não é uma
mera demonstração de mau perder. É, sim, uma contestação às regras,
instituições e convenções que definem as repúblicas liberais em que vivemos. E
é, em bom rigor, antidemocrático. Toda esta gritaria, alegadamente em nome dos
valores democráticos, tem feito pior à democracia do que ao próprio Trump.
Vamos ao básico – sustendo a
inquietação que suscita termos de dar esse passo atrás. Ao contrário das
tiranias, as nossas repúblicas não se definem pelas pessoas que as governam,
mas pela aceitação (por parte de todos) das regras de acesso e fiscalização do
poder político. Dito de outro modo, a solidez de uma democracia não se avalia
só pela forma como se ganha, mede-se sobretudo pela forma graciosa como se
perde. Foi esse o alerta que lancei logo na noite das eleições americanas: por mais que
não se goste de Trump (e há muito para não gostar), importa reconhecer a sua
legitimidade para liderar os EUA. Porque, no ato da concessão de derrota por
parte dos adversários, não estão em causa Trump ou Clinton, mas as regras que
enquadram o regime – o processo eleitoral, a soberania popular, os freios e
contrapesos institucionais. Sim, nessa noite eleitoral, Hillary Clinton não
esteve à altura das circunstâncias – como, antes dela, estiveram John McCain ou
Al Gore. Mas, pior, é constatar, passados dois meses, que tantos, para
contestar Trump, estão disponíveis para questionar o regime que lhes garante as
suas liberdades. A maior ameaça à democracia está aí, não em Trump.
Já se sabe que, da direita
nacionalista à esquerda revolucionária, encontram-se muitos fãs de Donald
Trump. Porque partilham alguns dos seus ideais políticos? Em parte, sim. Mas,
no fundamental, para os populistas que celebram o novo presidente americano, o
ponto nunca foi Donald Trump em si – as suas ideias, as suas políticas, as suas
bandeiras. Interessa-lhes a contestação que ele gera. Encanta-os o
enfraquecimento das instituições democráticas, disputadas nas ruas. Agrada-lhes
o ambiente de crispação que legitima as críticas populistas e o diagnóstico de
fracasso das democracias abertas e liberais. Importa-lhes o entrincheiramento
do debate, que dobra as regras institucionais e quebra os consensos sociais
estabelecidos. Para eles, quanto pior, melhor. E a campanha já está nas ruas.
Numa ponta do mundo, Michael Moore encabeça protestos contra o Colégio
Eleitoral e clama em glória que o “verdadeiro poder” está nas ruas. Na outra
ponta, Boaventura de Sousa Santos (sempre ele), a propósito
de Trump, explica que “a democracia que temos não tem futuro”. Nada de novo –
já vimos este filme antes, contra George W. Bush. Hoje, o ódio a Donald Trump é
o novo terreno fértil para plantar as velhas ideias antiliberais, antidemocráticas
e anticapitalistas.
Preparemo-nos, pois, que os
anos de Trump serão difíceis. Por causa do óbvio – o próprio Trump, cuja visão protecionista
(na economia), distanciamento para com a União Europeia e dúvidas quanto à
relevância da NATO imporão consequências imprevisíveis à Europa (e Portugal). E
por causa do menos óbvio – a quantidade de inimigos da liberdade que,
apropriando-se dos protestos contra Trump, encontrarão novos militantes para as
suas ideias revolucionárias. Já há, felizmente, muita gente a levar os perigos
de Trump a sério. Mas ainda há, infelizmente, muito pouca gente acordada para
os perigos dos seus inimigos.
Título e Texto: Alexandre Homem Cristo, Observador,
23-1-2017
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