Gostei e recomendo a leitura.
Várias são as passagens que adoraria dividir com os leitores.
Embora trate especificamente
do caso de Portugal, o alerta de João César das Neves aplica-se a qualquer
economia, inclusive a doméstica.
Sinteticamente, é a mesma
coisa do ‘cheque especial’. Você vai usando, usando, até tornar esse limite
parte do seu orçamento mensal, isto é, você ganha três mil, tem mais dois mil
de limite, igual a cinco mil. Aí, você gasta cinco mil por mês. Vai chegar o
dia que o seu salário/rendimento mensal não chega para cobrir o saldo negativo.
Você vai falar com o gerente… mais uns dias, umas semanas. Um belo dia o banco
nega-se a cobrir o seu cheque, não pode mais sacar no caixa eletrônico… aí a
vaca (e toda a criação doméstica) vai pro brejo.
Na maioria dos casos, as pessoas (endividadas) apertam os cintos tantos buraquinhos quantos forem necessários até conseguirem equilibrar as contas. Isto é, ganhar mil e gastar novecentos e noventa e nove. Já é um bom começo.
Outras pessoas saem berrando
contra o gerente culpando-o pelas suas próprias dificuldades. É o caso do
governo de Portugal (e o da Grécia também). O país, representado por um governo
com três partidos anticapitalistas, estalinistas e antieuropeus não só quer
renegociar a dívida, eufemismo para não pagar, como exige que o “banco” (outros
países europeus = contribuintes desses países) lhe empreste mais dinheiro. Para
distribui-lo pelos ‘clientes’ desses partidos. Entendeu?
Leia este excerto, por favor.
“A imposição
da austeridade
Portugal vive um momento de
perplexidade e confusão. Essa situação resulta sobretudo de duas falácias
básicas, que penetraram não apenas o discurso oficial, não apenas a atitude das
elites, mas a própria mentalidade nacional. É verdade que, no fundo, as pessoas
sabiam que o que diziam não podia ser verdade. Mas, por outro lado, a
habituação foi-se tornando endémica. A origem da disfunção cognitiva entre
discurso e sociedade é mais profunda do que parece. Realmente, ela constitui o
último episódio de um longo mito nacional, paralelo ao ‘El Dorado’ ou ao
‘Encoberto’.
A ilusão começou com a entrada no mercado único europeu em 1992. A cooperação financeira e a construção da moeda única, então iniciadas, implicaram uma descida acentuada das taxas de juro para um país habituado a estar à margem dos mercados internacionais. Isso abriu novas fontes de abundância. De novo, como nas épocas da pimenta da Índia e do ouro do Brasil, os sonhos mais ambiciosos pareciam acessíveis. O país começou um longo período de gastos a crédito, não só por parte das autoridades, mas também pelas empresas e as famílias. Portugal passou quinze anos a viver de empréstimos.
A primeira consequência deste
processo é naturalmente a enorme dívida externa, pública e privada, uma das
maiores do mundo, que nos assombrará durante décadas. Mas o pior efeito foi o
impacto em hábitos e instituições. Durante esse longo período de ilusão, o país
acostumou-se e organizou-se para um nível de vida insustentável.
Paulatinamente, regalias passavam a direitos, sonhos tornaram-se exigências,
ambições ficavam certezas. As novas gerações foram achando normal ter aquilo
que só se podia pagar com dinheiro dos estrangeiros.
Esse clima de ficção terminou
abruptamente em 2008, com a crise financeira internacional, que constituiu um
embate na realidade, aqui como em todo o mundo. Começou então a conjuntura que
os dois livros anteriores descreveram. Quando o choque rebentou e a primeira
ilusão morreu, houve duas reações. O povo em geral abriu os olhos e mudou mesmo
de vida. Foi espantoso ver a atitude de famílias e pequenas empresas, que no
meio de enormes sofrimentos se desvencilharam da terrível situação. Uns
emigraram, outros mudaram de setor, muitas empresas ajustaram a atividade,
cortaram custos, alteraram o produto; outras morreram para renascer renovadas
logo a seguir. A economia ajustou-se debaixo de enorme pressão.
Nas elites, porém, a mudança
foi mais de discurso que de realidade. Tornou-se urgente construir novo mito
que permitisse depositar a culpa em porta alheia, justificando os protestos.
Assim, embora muitos mudassem de vida, vários grupos de pressão limitaram-se a
ajustar a ilusão para evitar enfrentar o sofrimento. Surgiu então a segunda
falácia, intensamente repetida pela elite até parecer verdade.
Os níveis de vida empolados a
crédito continuaram a ser vistos como normais, procurando-se explicações
alternativas para a sua ausência. Afinal éramos todos inocentes e a maldade
vinha de um punhado de corruptos incompetentes e das imposições da troika, que nos vinha ajudar. A tese
defende que o nosso sofrimento é devido, não à situação económica, mas às
medidas inúteis que a Europa impõe. A famosa austeridade é, portanto, uma
rematada tolice, resultado de uma ortodoxia economicista idiota e sádica, que
destrói o Sul da União. Essa segunda fantasia, em que quase todo o aparelho
político-mediático anda apostado desde então, constitui uma magna operação de
desinformação. E que se livrem de a contrariar!
Claro que a posição só se
aguentava porque tinha um elemento de verdade. Fazer um esforço de contração no
meio de uma recessão é agravar a situação de sofrimento. Os anos após 2008 eram
os menos adequados a um exercício de austeridade. Mas, por outro lado, como se
abusara nos anos de prosperidade e se perdera a confiança dos credores, não
havia grande alternativa para retomar o acesso aos mercados.
Por outro lado, se tinham
razão nos custos, as críticas à austeridade erravam fragorosamente ao
esquecerem-se do problema. Chega a ser incrível como essa explicação consegue
sempre evitar qualquer referência a estagnação, dívida, défices e
desequilíbrios. Parece que tudo ficaria muito bem, desde que a troika não nos incomodasse. Deixando cá
o dinheiro que emprestou, claro! A única menção ao passivo é para recomendar o
seu repúdio, renegociando a dívida. O que, naturalmente, é visto como uma
solução mágica e um almoço grátis, sem consequências nefastas no futuro.
Esta segunda falácia teve
efeitos importantes na estratégia. O Estado, as câmaras municipais e demais
instituições fizeram o mínimo possível de reformas, esperando que a crise venha
a passar, para se voltar ao mesmo. Sem entender que esse regresso geraria nova
crise. Grandes empresas, próximas do poder, gravemente atingidas pelas tolices
antigas, aparentaram uma normalidade oca. Em particular a banca, óbvia
protagonista da crise financeira, assobiou para o lado, empurrando o problema com
a barriga. A oposição de então, grande responsável da crise por ter sido
governo quando ela inchava, gritou indignada como se lhe fosse alheia, sem
realmente apresentar uma verdadeira alternativa à austeridade. Apesar dos
disfarces, a patente incapacidade de todas estas entidades em cumprir as suas
funções sociais mostra a gravidade da situação.
Funcionários, médicos,
professores e muitos outros grupos profissionais, que tanto ganharam nos anos
fáceis, tinham de conhecer a trajetória ruinosa que os seus sistemas seguiam.
Só com enorme cegueira voluntária puderam depois indignar-se perante os cortes
de despesas insustentáveis que acumularam diariamente sem os denunciar.
Pensionistas, subsidiados, munícipes e utentes quiseram acreditar nas benesses
que políticos irresponsáveis lhes concediam, apesar dos défices funcionais dos
serviços mostrarem a evidência do embuste. Não só os aceitaram mas erigiram-nos
em direitos inalienáveis, apesar de se incorrer em custos muitos superiores às
receitas e liquidados por dívida externa. Por isso, dizer-lhes que os seus
descontos não garantiam os níveis prometidos gerava fúrias incontroláveis. A
resposta mais comum era o insulto: os realistas têm que ser corruptos,
neoliberais, hipócritas ou mentecaptos, pois nada é mais negativo que a
sinceridade num povo embevecido pela ilusão. A verdade parece crime de
lesa-pátria.
O resultado foi aquele que se
viu. Portugal saiu com sucesso do programa de ajustamento em junho de 2014, mas
com a situação longe de estar equilibrada. Não só falharam todas as metas
acordadas, mas a situação financeira permaneceu altamente preocupante, apesar
de todas as garantias das autoridades portuguesas e europeias.
A violação das obrigações é
fácil de demonstrar pela consulta do quadro seguinte. Ele relembra os valores
para o défice orçamental em percentagem do PIB que foram acordados no início do
programa, em 2011. Estes níveis foram sucessivamente revistos, à medida que se
constatava a divergência e, mesmo assim, sucessivamente ultrapassados. Como sinal
dessa revisão, o quadro inclui o ajustamento feito no final do segundo ano, em
outubro de 2012, quando era já evidente o incumprimento. A última linha
apresenta os valores realmente observados e o último orçamentado.
2010
|
2011
|
2012
|
2013
|
2014
|
2015
|
2026
|
|
Memorando de junho de 2011
|
-9,1
|
-5,9
|
-4,5
|
-3
|
-2,3
|
-1,9
|
-1,8
|
Quinta revisão de outubro de
2012
|
-9,8
|
-4,4
|
-5
|
-4,5
|
-2,5
|
||
Real
|
-11,2
|
-7,4
|
-5,5
|
-4,8
|
-7,1
|
-4,3
|
-2,2*
|
* Orçamentado
Quanto ao segundo elemento, a
fragilidade da situação financeira resultante do programa, ela ficou provada
imediatamente, quando poucos dias depois do seu fim, a 3 de agosto de 2014, se
deu a resolução do Banco Espírito Santo (BES), primeira de uma sequência de
crescentes dificuldades nas instituições de crédito nacional. Então, após o
episódio orçamental – longe de estar acabado – começava o drama bancário. Mas
isso não impediu a manutenção da falácia.”
João César da Neves, in “As 10 questões do colapso – Portugal: A
provável derrocada financeira de 2016-2017, páginas 29 a 33.
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