domingo, 29 de janeiro de 2017

O "pensamento" único

Alberto Gonçalves

Nas televisões e nos jornais, sobram, por enquanto, alguns lugares onde a “direita” consegue aliviar-se de duas ou três opiniões. O quadro geral, porém, é de uma humilhante submissão ao poder vigente e às respectivas simpatias

Há dias, a dona Catarina do BE, afirmou a um diário que, face à dívida, só nos resta a “negociação unilateral”. O conceito tem a pertinência de, digamos, um matrimônio individual, no qual o noivo vai à conservatória e a noiva nem o conhece. Mesmo assim, a dona Catarina não se riu, os jornalistas que a entrevistaram não se riram e Portugal não sucumbiu a uma epidemia de gargalhadas idêntica à de Tanganyika. Na nossa exótica vida pública, certas criaturas e certas “ideias”, alucinadas que sejam, adquiriram o curioso direito de ser levadas a sério.

Lembrei-me deste episódio quando, anos depois, voltei a concordar com um artigo de José Pacheco Pereira (Uma comunicação social cada vez menos plural, no Público). Não concorde com o artigo inteiro, nem sequer com metade. A bem dizer, não concordei com quase nada, excepto com o pedacinho em que JPP reclama “uma comunicação social menos enfeudada ao poder do ‘pensamento único’, que não condicione pela agenda, pelo tratamento de títulos e notícias, pela duplicidade política do que entende ‘grave’ ou venial e que, acima de tudo, atue num sentido único da vulgata que passa nos nossos dias por ser a ‘realidade’”.

Para encontrar uma amostra destas patentes desgraças, basta ver A Quadratura do Círculo, programa televisivo em que – ai a coincidência – JPP e dois confrades “debatem” a “atualidade”. Há muito que, na maioria das emissões, a “atualidade” se resume ao líder da oposição, e o “debate” consiste em matá-lo, esfolá-lo e, mal JPP toma a palavra, em triturá-lo com esmero. Se A Quadratura mandasse, Pedro Passos Coelho demitia-se semana sim, semana sim, empanado em alcatrão e penas. De caminho, e ainda que empurre jovialmente o País para nova bancarrota, o chefe do Governo – e antigo membro daquela confraria – escapa incólume ou medalhado pelas suas proezas. Misteriosamente, o “pensamento único” de que JPP se queixa é o da “direita”.

Não caio na infantilidade de recorrer ao argumento exatamente oposto. Nas televisões e nos jornais, sobram, por enquanto, alguns lugares onde a “direita” (leia-se tudo o que não se desfaz em mesuras perante a oligarquia) consegue aliviar-se de duas ou três opiniões. O quadro geral, porém, é de uma humilhante submissão ao poder vigente e às respectivas simpatias. No fundo, cerca de 87% do espaço “mediático” (desculpem) disponível serve para desancar em Pedro Passos Coelho e bajular os abundantes inimigos dele. Ocasionalmente, para desenjoar, bate-se em alvos acessórios e que com retorcida habilidade lá se arranja forma de associar ao presidente do PSD: a “troika”, o senhor Trump, o “neoliberalismo”, o “nacionalismo”, a “globalização”, os lucros da banca, as perdas da banca, etc. O fato de não haver aqui vestígio de coerência, ou de vergonha na cara, não prejudica a estratégia. A acreditar nas sondagens, favorece-a.

Moral da história? Não existe. Existe uma evidência: a vulgata omnipresente é aquilo que JPP, aí por 2011 e razões que não comento, desatou a defender. E a realidade, sem aspas, é o que nos cairá em cima, não tarda. Previsivelmente, como de costume, os autores da farsa sairão dela entre risos. Nós já não iremos a tempo. 
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Sábado, nº 665, de 26 de janeiro a 1 de fevereiro de 2017

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