Há alguns anos, quando saí de
Niamey, a capital do Níger,
e me dirigi para o norte numa trilha esburacada e suja foi como se o país desaparecesse
sobre mim. Não havia polícia, nenhum sinal de autoridade, nada. Inundações
instantâneas tinham deixado a estrada completamente aluviada em certos locais,
com as rodas dos grandes caminhões meio afundadas na lama, e motoristas
estancados por dias nos acostamentos. Por aqui havia apenas Tuaregues, os "homens
azuis”, como eles são chamados em função da cor de suas vestes chamativas e o
azul tingido delas ("nila") e que eles besuntavam em seus corpos.
Os Tuaregues, uma gente
bárbara e pastoril, eram os lordes do Saara; é melhor ter a companhia de um
Tuaregue do que um aparelho de GPS, como diz o ditado das Forças Especiais do
Exército dos EUA, com as quais eu estava engajado. Minha experiência de rumar
para o norte de Timbuktu em
Mali foi ainda mais extrema. Embora denote a volta do além, Timbuktu era
realmente um local cosmopolita – com um museu de manuscritos islâmicos
medievais, alguns restaurantes decentes, e antenas parabólicas – comparado com
o lugar para onde eu estava indo.
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O deserto do Saara se estende por todo o norte do continente africano, do Atlântico ao Mar Vermelho. Outrora havia aqui uma floresta tropical como a Amazônia... Os egípcios que o digam! |
Saí para Araouane, 240 km (150
milhas) ao norte de Timbuktu deserto adentro. Araouane era um nome no mapa,
como se fosse Cleveland ou outro lugar qualquer. Mas ninguém em Timbuktu – e
certamente não em Bamako, a capital malinês muito distante no sudoeste – sabia
qualquer coisa a respeito de Araouane, e se ainda alguém vivia lá. Levou 14
horas e numerosas paradas na areia fina até alcançar Araouane, um amontoado de
ruínas num vazio cósmico onde apenas mulheres, crianças e idosos viviam – os
homens Tuaregues saem para praticar incursões de comércio em rotas de
caravanas, através do deserto.
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Vista de Araouane, do satélite, não passa de um conjunto de ruínas que ora mergulham e ora emergem das areias levadas e trazidas pelo vento. |
Aqui, o estado malinês não existe. Há uma lição geográfica aqui. Observe num mapa do Saara, do Oceano Atlântico ao Chifre da África e verá a Mauritânia, o Mali, a Nigéria e o Chade, países que abrangem um tamanho comparável à área dos Estados Unidos. Então repare onde as capitais desses países se situam: incrustadas ao longe, no sul, dentro da planície de Shael, onde são extensões demográficas e ambientais da costa da África Ocidental – e também onde estão as elites políticas locais, que os europeus descobriram estar localizadas.
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Os tuaregues são os donos do deserto e dominam a região do norte do Mali, do Chade, da Mauritânia, e parte da Argélia. |
Pode-se dirigir de Cotonou no
Benim no Golfo da Guiné, para o norte por centenas de quilômetros até Niamey, e
a paisagem quase não muda – comparada com as diferenças concentradas que se
encontram mais adiante. Pois assim que se deixa Niamey rumo ao norte ou
nordeste a paisagem evolui até o completo deserto. Uma situação similar ocorre
após se deixar estas outras capitais. Os colonizadores europeus ao desvendar
essas paragens decretaram que o deserto seria governado não de um ponto
central, como previamente haviam feito as culturas bárbaras e nômades, mas de
uma periferia distante, orientada pela costa na planície de Shael.
Tal situação tornaria a
governança no interior difícil, na melhor das hipóteses. Mas nesta parte da
África a condições são as piores possíveis, uma vez que o nível de
desenvolvimento institucional e as ligações de transportes sã abissais, e é
através de rodovias que as instituições governam os sertões desertos e
afastados. Há pouca atividade econômica no deserto fazendo com que os governos mantenham
não maios do que uma leve pegada por lá. Tais países não passam de um amontoado
de cidades-estados -- Nouakchott, Bamako, Niamey, Ndjamena – com exércitos
próprios que tentam manter alguma ordem nas áreas mais distantes e menos
populadas.
Exércitos locais nunca
conseguiram governar este deserto; ao invés, eles têm mantido durante a maior
parte do tempo um cessar-fogo estável com os Tuaregues por lá (quase sempre
pela integração de guerreiros Tuaregues chaves com bases militares locais). A
democracia complicou a situação, mesmo que ela tenha ajudado a dar início a uma
tradição de melhores governanças. Como certa vez um diplomata em Bamako me
explicou, com a democracia passou a haver mais pressão sobre os políticos
locais para gastar dinheiro no sul populoso, próximo à capital, pelo fato de
que é lá que está o grosso do eleitorado. E sem a ajuda às comunidades ao
norte, a governança não pode eventualmente ser realizada.
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Foto: Reprodução/AFPTV/France 2 - Rebeldes tuaregues tomaram três cidades do Norte do Mali e declararam a independência da região. |
A mais efetiva experiência
governamental nas terras tuaregues do Saara foi a da Argélia. Há poucos anos,
passei um mês em Tamanrasset, no estremo sul da Argélia, tão longe da capital
Argel no Mediterrâneo como de Lagos na Nigéria no Golfo da Guiné. A Argélia é
um estado real, com um exército altamente profissional e diversas instituições.
Ma foi o exército argelino que governou Tamanrasset e seus arredores, não os
burocratas de um governo civil. A segurança, mesmo nesta cidade principal do
Saara central – governado por um estado nada menos que mediterrâneo e norte
africano – era tênue. A Argélia como tal, muito da Nigéria e Mali como tais,
acabou longe, muito longe, de estar próximo à capital.
O dilema Tuaregue, no qual
estes bárbaros seminômades têm recentemente conquistado a metade norte do
território de Mali e podem mesmo ameaçar os países vizinhos, não está
completamente solucionado. O moderno sistema estatal europeu é um elegante
desajuste para o que se possa obter do Deserto do Saara. Entretanto, não está
fora de questão que num futuro próximo, por meio da construção de melhores
estradas (capazes de não serem soterradas pelas areias móveis do deserto) as
instituições se tornem mais robustas – coisas que advêm com o desenvolvimento
econômico e a democracia – e governos locais como os de Bamako e Niamey podem
estender o desenvolvimento deserto adentro, mesmo que se garanta aos Tuaregues
um razoável grau de autonomia. Um estado Tuaregue independente no Saara pode
então existir mais formalmente – e o ocidente ainda terá aliados para combater
a al Qaeda na região.
O problema em Mali, onde
jovens oficiais do exército têm deposto governos eleitos ostensivamente por
causa de sua incapacidade em controlar os Tuaregues no norte, não é a única
ditadura a substituir a democracia. O problema também é a fugacidade da
autoridade central em si. Num clássico trabalho de teoria do desenvolvimento, ‘Ordem
Política em Sociedades Mutantes’ (1968), o professor de Harvard Samuel P.
Huntington notou que muitos governos em locais como a África não podem
simplesmente ser classificados como democráticos ou autoritários, por causa de
sua principal "característica distintiva" ser a total
“fragilidade", não importando quem esteja no comando. Eles têm poucas
instituições para governar e fortes burocracias, ao invés de eleições que
verdadeiramente definam um sistema adequado de governo.
Assim, Mali e seus vizinhos
vão cambalear adiante. Poderá haver eleições em Bamako, ou não. Assaltantes
Tuaregues podem controlar o deserto interior, ou um batalhão de soldados do sul
vindos da capital poderá fazê-lo. O drama africano realmente fundamental será
encenado gradualmente fora das estritas reportagens da mídia. Tal drama será
sobre como, e se, o recentemente impressionante crescimento econômico da África
pode levar à criação de uma classe média mais ampla. É uma classe média maior
que leva, por sua vez, a ministérios governamentais mais eficientes e
vigorosos, e a forças armadas mais bem equipadas e mais profissionais, de modo
que os sertões do deserto possam ser mantidos sob controle e artificialmente
descortinar fronteiras mais factíveis.
Os países saarianos, neste
particular, representam uma versão mais extremada dos principais desafios africanos,
como o fato de o deserto ter criado a maior dicotomia populacional dentro do
continente.
E isso será duro de
concretizar. Por exemplo, o fato de que a capital Luanda, de Angola, na costa
atlântica, estar bombando graças à riqueza do petróleo offshore não
significa que o extenso interior angolano no sudeste africano vá se beneficiar
disso. O mesmo pode ser dito da recentemente enfraquecida e rejuvenescida
Mogadíscio e se isso afeta ou não o resto da Somália. O desafio africano, ou
pelo menos um aspecto dele, é estender a boa governança e o desenvolvimento
muito além das suas capitais.
Robert D. Kaplan, abril de
2012
Tradução: Francisco Vianna
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