Dar um golpe de Estado, ao contrário do que
acham os editoriais, os cientistas políticos de esquerda e o governador João
Doria, não é um negócio assim tão simplesinho
J. R. Guzzo
Muito bem: e esse golpe de Estado “do Bolsonaro”? Sai ou não sai? Para quando é, afinal? Já agora, para o dia 7 de Setembro, junto com as manifestações pró-governo e anti-Supremo? Quando os caças Grippen da Força Aérea Brasileira chegarem enfim da Suécia e puderem quebrar os vidros do STF em Brasília, rompendo a barreira do som com voos rasantes sobre o seu edifício-sede? Quando os caminhoneiros fecharem a Transamazônica? Na próxima vez que os ministros derem “três dias de prazo” para o presidente da República fazer isso ou aquilo? A verdade é que todo mundo fala, fala e ninguém diz o mais importante: que dia e a que hora, afinal das contas, vai sair esse golpe de Estado. Isso a Globo não diz. Ninguém diz.
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O presidente Jair Bolsonaro recebeu no dia 10 de agosto veículos militares, como tanques e armas de guerra, na Esplanada dos Ministérios | Foto: Antonio Molina/Fotoarena//Estadão Conteúdo |
Há algum tempo, não se sabe
bem quanto, a mídia, a classe política, a nebulosa chamada “elites brasileiras”
e o universo intelectual-liberal-radical que toma vinho, lê jornal e se
atormenta com a “variante Delta” praticamente não falam de outra coisa: o golpe
que será dado em algum momento por Bolsonaro ou, então, pelo seu primo-irmão, o
conjunto de “atos antidemocráticos” que estão em tudo, em todas as pessoas e em
todos os lugares ao mesmo tempo. Os editoriais vão assumindo um tom cada vez
mais desesperado. Os jornalistas de televisão, entre um e outro momento de
indignação com a ausência de máscaras nos estádios de futebol, veem um golpista
atrás de cada poste de luz. Os políticos de “esquerda” vivem em histeria plena
e permanente. E por aí vamos.
Quem estaria disposto a tirar do bolso uma nota de R$ 2 para defender o
STF?
Não é só conversa. O ministro Alexandre de Moraes, chefe de polícia do STF para a vigilância da boa ordem constitucional, despacha furiosamente num inquérito (100% ilegal) para descobrir atos “antidemocráticos”, reprimir a circulação de fake news e tornar as redes sociais seguras para a democracia. O corregedor de uma das dependências do Supremo, o “TSE”, proibiu as plataformas digitais de pagarem as somas em dinheiro devidas para canais de comunicação de direita. O STF prende gente como se fosse uma delegacia de polícia — pouco ligando para o que o Ministério Público, o único órgão oficial autorizado por lei a pedir a prisão de alguém no Brasil, acha ou não acha disso. Um deputado federal em pleno exercício do seu mandato está preso — continua sendo deputado, mas tem de ficar em casa com tornozeleira eletrônica. O cantor caipira Sérgio Reis é chamado a depor na Polícia Federal. A CPI da Covid tem acessos repetidos de neurastenia.
Só mesmo uma ditadura de
verdade, tipo essa com a qual nos ameaçam para qualquer momento, seria capaz de
fazer tudo isso ao mesmo tempo — mas estamos no Brasil, e no Brasil de hoje é
assim que funcionam as coisas; para manter intacto o Estado de direito, o STF
tem o direito e o dever de mandar a Constituição Federal para o diabo que a
carregue. Nada disso, é claro, está tirando o sono do brasileiro que chacoalha
todo dia no trem da Central, acorda às 4 da manhã para pegar no serviço e
carrega no braço saco de cimento para a obra. O golpe “do Bolsonaro”, aí, não
assusta ninguém — a maioria, por sinal, ficaria a favor se fosse consultada. O
povo acha que golpe só faz mal para “político” — e político, na sua opinião, é
“tudo ladrão safado”. Fica chato dizer isso? Fica. Mas é assim. Não esperem,
portanto, o povão nas ruas, indignado com a “ruptura da ordem democrática”.
Quem estaria disposto a tirar do bolso uma nota de R$ 2 para defender o STF? E
o Senado Federal? Esquece.
É possível que as
“instituições” percebam perfeitamente isso, até por seus instintos básicos —
embora seja mais fácil o camelo da Bíblia passar pelo buraco de uma agulha do
que um político, jornalista ou artista de novela admitir que a imensa maioria
da população brasileira está pouco se importando com as angústias de Brasília.
O problema, de qualquer forma, não é discutir as diferenças relativas de
opinião que existem entre povo e elite nessa questão de golpe militar. A única
questão que realmente interessa é, até o momento, a menos discutida de todas: o
governo, que é acusado três vezes por dia de preparar o golpe, tem algum meio
real para dar o golpe? Ou seja: pode mesmo virar a mesa se decidir que vai
fazer isso? Tem um plano detalhado para a operação? Ou tem ou não tem; ou tem,
ou então é tudo conversa.
Dar um golpe de Estado, ao
contrário do que acham os editoriais, os cientistas políticos de esquerda e o
governador João Doria, não é um negócio assim tão simplesinho; não basta fazer
umas lives, meia dúzia de passeatas de motocicleta e uma bateria de “disparos”
no Twitter. Não adianta desfile com trator em Brasília, dizer “pátria amada,
Brasil” e chamar o general Braga. Ninguém muda regime político nenhum por não
usar máscara, chamar o ministro Barroso de idiota ou defender “posturas
antidemocráticas”. O que define se vai “ter golpe” ou não vai “ter golpe” é uma
porção de coisas concretas que ficam mais embaixo — muitíssimo mais embaixo. A
primeira delas é planejar muito direitinho o que vai ser feito, na prática, no
primeiro minuto após o golpe — o que vai ser feito, quem vai fazer o quê, e com
quais recursos objetivos vão fazer o que tem de ser feito.
Não ajuda em absolutamente
nada ficar dizendo todo o dia no horário nobre que a situação está mais tensa
do que “nunca”, nem ficar assustando a população com gritaria que não tem
nenhuma informação importante. (Daqui a pouco vão estar pedindo para as pessoas
esvaziarem os supermercados.) Não adianta o governador de São Paulo punir um
oficial da PM por apoiar as manifestações de 7 de Setembro, ou insistir numa
briga com a polícia para parecer valente, e nem chamar admiradores do
presidente de psicopatas. Não adianta fazer reunião de governador, nem torcer
contra a reunião. O que interessa é dizer para os brasileiros se há ou não um
plano concreto e detalhado do golpe, e quais são os pontos, um por um, do tal
plano.
Há, naturalmente, a questão de colocar a tropa na rua — onde,
exatamente, e para fazer o quê, exatamente.
Então: “Bolsonaro” e os
“setores antidemocráticos” dão o golpe — aí o que acontece, na prática? Vão
fechar o Supremo e, caso sim, vão fazer o que com os 11 ministros? Prende?
Deixa solto? Põe o que no lugar do STF? A máquina da Justiça precisa continuar
funcionando; não vão parar as ações de despejo ou de cobrança. Outro problemão
é o Congresso. Fecha? Cassa mandato? Joga fora a papelada da “CPI”? O que vão
fazer com a reforma tributária? Fica tudo igual? Estão marcadas para 2022, com
voto eletrônico tal como quer o ministro Barroso, eleições para presidente,
governadores de Estado, Congresso e assembleias legislativas. É preciso definir
se elas vão ser mantidas ou suspensas, e, caso sejam suspensas, quando vai
haver eleição de novo. Quem pode ser candidato? Lula, por exemplo: pode ou não
pode? Com certeza não pode, mas — vai saber. Outra coisa: o que o golpe vai
fazer com os atuais governadores? E se os 27 aderirem, numa decisão corajosa em
favor da estabilidade e da pátria —– não se cassa ninguém? São Paulo vira um
Estado independente, em caso de rebelião contra o novo governo federal? Vai ter
uma Marinha, ou uma Força Aérea?
Há, naturalmente, a questão de colocar a tropa na rua — onde, exatamente, e para fazer o quê, exatamente. É indispensável decidir, antes, qual o serviço a ser feito aí pelo general “A” e pelo coronel “B”. Vai ter tanque? O tanque pode atirar? A tropa, aliás, estará autorizada a dar tiro — ou dá para resolver tudo com bala de borracha? (Em geral, dá e sobra.) No dia do golpe vai ter de estar resolvido, também, quem assume o comando das polícias militares dos Estados. É gente armada; não dá para decidir na hora. O novo regime também precisa resolver o que será feito com a imprensa. Censura? Pré ou pós? Tira a Globo do ar? Sabe-se como se entra nessas coisas; raramente se sabe como sair. Outra questão é como comunicar o golpe aos países estrangeiros — e, muito mais que isso, como reagir, na vida real, à enorme barulheira que um negócio desses vai provocar lá fora, durante anos a fio.
A lista das tarefas a fazer
vai por aí afora; é certo que ela precisa estar pronta antes de mexer no
primeiro blindado. É nisso que está tudo o que realmente interessa, mais do que
em qualquer ponto dessa conversa fiada sem limites que mídia e classe política
despejam o dia inteiro em cima do público. Talvez o presidente da República e o
seu núcleo decisor já tenham um plano desses há muito tempo, trancado num
computador secreto e pronto para ser colocado em execução. Talvez não tenham.
Se não têm, então não têm nada.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista Oeste, nº 85, 27-8-2021
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