Aparecido Raimundo de Souza
UM BANDO de meninas alegres e saltitantes, entre doze e quinze anos, conversavam aos pés da escada de entrada do edifício onde moramos. Eu estava sentado no topo, colado quase a porta de vidro que acessa a nossa torre. Vigiava a Ellen, minha neta de treze, enquanto assistia um filme no celular. Como a pequena mora comigo desde que tinha cinco para seis anos, e aqui em casa somos só nós dois e a empregada, não deixo que saia sozinha.
Ademais, meu edifício se situa em beira de praia, de frente para um mar grandioso e, para piorar, uma avenida movimentadíssima. Tem havido muitos assaltos e até sequestro de crianças nesta idade, notadamente de meninas. Por essa razão, levo e trago a Ellen da escola. Quando ela quer andar de bicicleta, tomar banho de piscina ou de mar, ou somente prosear ou sair para se divertir com as coleguinhas, eu faço questão de colar junto. Como agora. Sempre alerta. Se essa mocinha some, o que eu iria dizer aos pais dela, ou seja, a minha filha e genro?
Pois bem. Entre as conversas, o papo girava em torno das profissões dos pais:
— O que seu pai faz?
— Ele é barbeiro...
— E a sua mãe?
— Manicure...
— Legal.
— Então – corroborou a outra – a sua mãe fica nas unhas e pés enquanto o seu pai gosta de fazer carinho na cabeça das pessoas?
A que disse que o pai era barbeiro achou ruim. Fuzilou a que deu a resposta:
— Engraçadinha. E o seu o que faz?
— O meu é pedreiro.
— Nunca ninguém reclamou que a casa que ele construiu caiu ou ficou capenga?
— Não.
— Tem certeza?
— Absoluta.
— E sua mãe?
— Ela é cuidadora.
— De quê?
— De idosos, ora bolas.
— O seu pai, Yolanda, o que ele faz?
— É vigia noturno...
— E o que ele vigia?
— Uma enorme fábrica de móveis...
— Nessa “fábrica se fabrica” guarda roupas?
— Sim! Por qual motivo ficou com essa cara de deboche?
Risadas.
Yolanda trucidou a amiguinha fazendo um gesto obsceno com o dedo:
— Calma. Vamos manter o foco. E a sua mãe?
— Dona de casa. Trabalha para o síndico aqui do nosso prédio.
Chegou a vez da minha neta:
— Diz ai, Ellen: — O que é mesmo que a sua mãe faz?
— É médica.
— Nossa. Eu gostaria de estudar para ser médica...
Uma outra aproveitando a resposta, ajuntou:
— Qual a especialidade dela?
— Infectologista. Trabalha em vários hospitais.
— E seu pai?
— Papai é aquele médico que vive de enfiar o dedo no cu dos outros.
Caí num riso forte e prolongado de chegar a chorar, em face dessa resposta. Todas, sem exceção, se viraram para onde eu havia me sentado:
— Está rindo de que, pai? (Ellen me chama assim desde que veio morar comigo) – Inquiriu muito séria e sem graça a minha neta.
Desconversei. O que poderia dizer? Que bisbilhotava o papo delas?
— Do filme que estou vendo, minha princesa... aliás, muito engraçado...
Não poderia revelar que escutava a conversa e quase mijara pernas abaixo, exatamente em face da resposta que a minha garotinha havia dado às coleguinhas.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 17-1-2025
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Juro que queria ter essa facilidade ‘dom’ de entrar num assunto e depois passar para outro, como o Aparecido neste texto engraçado onde ele, vigiando a neta, em ‘Especialidades’ nos deixa uma lição clara e surpreendente. Na verdade, a sua ‘especialidade’ é a marca registrada como escritor. Reparem. De uma conversa simples e corriqueira entre jovens meninas, ele só de observar a neta, descamba para o lado engraçado. E constrói uma história envolvente e nos prende em suas viagens emocionantes. Esse texto de Aparecido Raimundo de Souza é uma narrativa simplória, sem rebusques, contudo, bem-humorada e envolvente sobre um avô que cuida de sua neta e observa as conversas dela com as amigas. A crônica destaca a preocupação dele, como avô com a segurança da mocinha de treze anos, e a dinâmica divertida entre as meninas enquanto discutem as profissões dos pais. O final é particularmente engraçado, quando a Ellen faz uma observação inesperada sobre a profissão do pai, levando o avô a rir descontroladamente. É, pois, uma leitura de concepção leve e divertida, mas que no fundo, captura momentos bucólicos do cotidiano com um toque surpreendente de humor. No todo, a crônica ‘Especialidades’ é uma leitura leve e envolvente que prende bem a dinâmica entre o avô e a neta, além das interações das amigas dela. A narrativa é repleta de momentos de humor e observações cotidianas que muitos de nós, como leitores, podemos nos identificar. O avô, ao observar as conversas das meninas, reflete sobre as profissões dos pais delas, o que leva a uma série de trocas engraçadas e comentários sarcásticos. A resposta da neta sobre a profissão do pai, que é médico (na verdade urologista ou proctologista), chega até nós de uma maneira bem direta e sem rodeios. Acredito, seja nesse momento, que o ponto alto da história se eleva e amadurece e não só isso, nos faz pensar seriamente em como mostrando a um só tempo a inocência e a franqueza das crianças, podemos interagir com elas, sem entrar no papo ou sem dar a perceber que vigiamos. Além disso, o texto também aborda temas como a segurança e a preocupação dos pais e avós com os filhos e netos, especialmente em um ambiente urbano movimentado. A narrativa, repito, é simples, pastoril, mas no fundo, eficaz e direta em transmitir essas emoções e situações do dia a dia. Na minha opinião, como leitora e observadora das coisas que o Aparecido escreve, a ideia central do texto creio, é destacar a importância da segurança e do cuidado velado dos pais e avós com os filhos e netos, especialmente em um ambiente urbano bastante aterrador e conturbado. Aparecido também quer transmitir a inocência e a franqueza das crianças, bem como a dinâmica divertida e as conversas típicas entre amigas da mesma idade. Lado outro, o texto aborda de maneira clara e sucinta, a relação afetuosa entre o avô e a sua neta, mostrando como momentos simples e cotidianos podem ser enriquecedores e cheios de humor. O Aparecido, a meu ver, parece querer lembrar aos seus leitores e a todos os pais, de uma maneira geral, da importância de valorizar esses momentos e das pequenas alegrias do dia a dia que eles nos proporcionam.
ResponderExcluirCarina Bratt
Da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro