Não me parece estranho ou
sequer incoerente que a encarniçada defesa dos transportes públicos seja
liderada, em larga medida, por gente que nunca usa os transportes públicos. Eu
próprio não ponho os pés num autocarro desde que tirei a carta (no glorioso ano
de 1988), recorri pela última vez ao metropolitano de Lisboa em 1998 e
desfrutei do metro do Porto uma ocasião nos idos de 2006. No resto, utilizo com
frequência anual (se tanto) a CP para descer à capital e a TAP para subir a
Nova Iorque, escolhas devidas à falta de alternativas e não a qualquer
preferência ou tara. Ainda assim, sinto-me inclinado a gritar na rua em prol
dos transportes públicos. Ou num recinto fechado, se fizer frio.
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Autocarro da Carris, Lisboa |
Antes, porém, permito-me um
esclarecimento. Para o meu gosto, os transportes públicos sofrem de um grave
problema: são públicos. Entramos num veículo do género e, de repente,
achamo-nos rodeados de desconhecidos que não queremos conhecer. Num certo
sentido, os transportes públicos constituem o equivalente de uma imaginária residência
pública, moradias ou apartamentos patrocinados pelo Estado e abertos a todos os
que desejassem ocupá-los mediante o preço de um bilhete comum ou de um
"passe" com desconto. Percebo, e aplaudo, a serventia dos abrigos
caritativos e dos lares de idosos, mas enquanto os rendimentos e a idade me
deixarem pretendo continuar a ver os episódios de The Office sem ter de ceder o
lugar no sofá da sala a uma senhora grávida (com a eventual excepção da minha
mulher, caso haja um imprevisto). E pretendo continuar a usufruir do quarto de
dormir sem o partilhar com dois escriturários, um advogado preocupado com o
"aquecimento global", a velhinha que vende fruta no mercado e sete
adolescentes agarrados ao telemóvel (a minha mulher, que me mata se eu não
fizer a ressalva, é novamente a excepção).
Absurdo? Claro que sim. Não é
à toa que nos empenhamos por manter íntimo o que exige intimidade, um princípio
nobre que vale para quando estamos quietos e, por maioria de razão, deveria
valer para quando nos deslocamos. Se as habitações ditas "sociais"
estabelecem limites de propriedade e asseguram o recato de quem nelas mora
(sempre que lhes apetece confraternizar, os locatários andam à pancada nas
escadas), custa um bocadinho compreender à primeira a existência de transportes
sem direito a essas regras basilares de civilidade. Não custa compreender à
segunda.
Julgo não sobrarem dúvidas de
que o único meio de locomoção capaz de garantir a plena independência dos
cidadãos é o automóvel particular, afinal o equivalente exacto das casas
particulares. Embora caro na compra e no sustento, graças à perseguição fiscal
que lhe é movida por um Estado naturalmente avesso à emancipação das massas, o
automóvel compensa as desvantagens através de um rol fulminante de proezas: não
obriga a convívios inoportunos; não depende de horários pré-determinados; não
amua por decreto da CGTP; possui, pelo menos o meu, uma selecção musical
imaculada. Em matéria de qualidade, pois, o automóvel é insuperável. Já em
matéria de quantidade, seria bom que não o fosse.
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Autocarro da SCTP, Porto |
De modo a realizar as suas
potencialidades, o transporte privado necessita de uma comezinha coisa: espaço.
Na hipótese, não tão remota, de os quatro ou cinco milhões de portugueses
encartados se sentarem ao volante e saírem simultaneamente estrada fora, as
estradas ficariam congestionadas num ápice e os automóveis reduzidos a tendas
de campismo metálicas, para cúmulo desprovidas de avançado ou barbecue. Não é
uma ideia agradável. É, no entanto, a ideia que justifica a importância dos
transportes públicos, vitais para escoar a parcela da população que, na
ausência de autocarros e carruagens, optaria conscientemente pela viatura
individual e inadvertidamente pelo caos colectivo. Em suma, o automóvel só
constitui um fator de autonomia (note-se a semelhança lexical) se houver
criaturas dispostas a abdicar desta em favor das grilhetas da Carris, dos STCP
e etc. - e se houver STCP, Carris e etc. Eis um exemplo de liberdade que começa
onde termina a liberdade dos outros.
É por isso que não me surpreende
ver políticos que apenas penetram um comboio em inaugurações ou campanhas a
protestar a anunciada reestruturação dos transportes das áreas metropolitanas:
muito humanamente, receiam que a redução das opções públicas lhes perturbe, por
força do tráfego, as deslocações privadas. E se os políticos, que beneficiam de
motorista, se queixam, eu, chofer de mim mesmo, queixo-me com o dobro da
legitimidade.
O que não arrisco é misturar o
queixume com os apelos às greves no sector. Além de as "paralisações"
significarem dias de balbúrdia nos IP, IC e EN do País, chegará o dia em que,
de "paralisação" em "paralisação", os financeiramente
esfarrapados transportes públicos arranjarão uma tetraplegia definitiva. Ou,
como disse o ministro da Economia em momento de sensatez, vai tudo à falência e
perdem-se milhares de empregos. E inúmeros utentes perderão o autocarro. E eu,
retido num engarrafamento, perderei a paciência.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Sábado, nº 393, 10 a 16-11-2011
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