‘Nunca estou só. Você está comigo e eu me completo no suor escaldante da sua paixão’ .
Tula Pilar – poetisa
TEM DIAS em minha vida, que o silêncio que me invade pesa mais que o corpo. O meu apê está cheio de móveis, mas completamente vazio de vozes. O café com leite na mesa da cozinha esfria na xícara, o pão com manteiga e o queijo me parecem sem sabor, como se também tivessem desistido de esperar companhia. A gente, de fato, nesses momentos, se queda ao deus dará, ou seja, se pilha ‘só.’ Esse frio e gélido ‘só,’ a bem da verdade, não se criou em decorrência de euzinha ter assistido um filme triste, ou trazido à baila a lembrança de uma música que eu ouvi e me deixou um monte de recordações. Nada a ver com abandono dramático. É o ‘só’ mesmo. O ‘só’ no sentido látego da palavra. Um estado desprezível do ser humano em trazer consigo alimentando essa fraqueza, ou dito de outra maneira, o ‘só,’ (somente) no sentido amplo de ser sozinha.
Tem uma outra variante do maldito ‘só,’ tipo aquela fase de como você, minha cara amiga e leitora, ao andar pelas ruas, percebe que ninguém te olha, não por maldade, mas por algo inexplicável, sem compromisso de uma espiadela no próprio mundo ou até mesmo ao entorno dele. Acredite, ele, o mundo, está ocupado demais com seus próprios ruídos. Ou quando você faz algo engraçado e se prostra rindo sozinha, e o eco da sua risada parece pedir desculpas por não ter plateia. Estar ‘só,’ obviamente, tem suas camadas. Camadas?! Como assim? Deixa tentar explicar. Tem a ‘camada boa’, de quem se encontra no silêncio, de quem dança na sala sem ninguém para julgar seus passos tortos. Tem a ‘camada dura,’ — grosso modo — de quem queria dividir o final de semana com alguém que ao menos indagasse se a carne assada recém saída da panela de pressão está boa para ser consumida com arroz e feijão e uma boa taça de vinho.
E tem a ‘camada invisível,’ — aquela que a gente nem percebe, mas que se instala como uma dor chata e impertinente nos cantos da alma. O ‘só’ é um lugar onde a criatura que vive sozinha aprende a escutar o próprio pensamento, quando ele resolve sair do marasmo. Às vezes ele grita, às vezes cochicha. Às vezes mente, as vezes fala a verdade que a gente não quer ouvir. Mas é aí, nesse espaço sem distrações, que tomamos uns tapas inesperados no meio da fuça e descobrimos o que realmente importa. O ‘só’ é um espelho sem moldura — tipo um cara genial que mostra tudo, às claras, sem a magia enganosa dos enfeites.
E talvez esse ‘só,’ seja preciso, de fato ser real. Raciocinem. Estar ‘só’ com a nossa agonia nos leva realmente a entender que companhia não é presença física. É conexão. Mais que isso: saber que, mesmo atolada no ‘sem ninguém’ do mais completo e perturbador silêncio, há alguém (às vezes perto de nós), ou dentro desse sem nada vazio e volúvel, que pensa em tirar a gente da agonia. Que de fato lembra, ou que por alguma razão sente. Seja como for, no fim, entre beliscões e assopros, concluo que estar sem companhia não é o mesmo que ser sozinha. Tem uma diferença sutil — quase imperceptível — entre estar ‘só’ e estar sozinha, caminha uma diferença que não se mede com fita métrica, nem com palitinhos de fósforos, mas com o coração. Estar ‘só’ é circunstância. É o momento em que a gente se senta na varanda, sem ninguém por perto, e percebe o vento conversando com nossas ideias, ainda que embaralhando tudo numa confusão bagunçada e fora de ordem.
Mesmo caminho, se repete quando a gente vai ao cinema sem companhia e, ainda assim, se emociona com o filme, ri ou chora, como se o mundo inteiro estivesse ali ao nosso lado. Estar sem um parceiro é bobagem física, é um externo vulnerável. É ainda o espaço solitário vazio ao lado no sofá da sala de tevê, para ver os filmes seriados da Netflix, o prato cheio de comida único na sala de jantar sendo fustigado pelo silêncio infame e aterrador das cadeiras que preenchem todos os ambientes. Estar sozinha, por outro lado, é ausência de sentimento por dentro. É quando a gente está cercada de gente, mas ninguém nos vê de verdade. É ainda mais. Quando a gente fala e vivalma escuta com o peito aberto. É quando um toque sutil não alcança, e o olhar não encontra o outro olhar, tampouco o abraço por mais apertado que seja não aquece. Estar sozinha é emocional, é interno. É o cotidiano destituído de uma ternura que não volta, ou pior, é o maçante ‘eremitado’ daquele afeto que não chega.
Minhas amigas e leitoras, a gente muitas vezes pode estar ‘só’ e uau!... se sentir bem. Podemos estar ‘só’ e nos acharmos inteira. Porque o ‘só’ em certos momentos, nos conduz ao encontro magistral de nós — melhor dito — de nós com nosso ‘eu’ dentro de uma pausa necessária, tipo aquele respiro brando, mas afável e duradouro entre os estardalhaços mais estapafúrdicos. É no ‘só’ que a gente escreve, que a nossa alma pensa, que a nossa dor se cura. Mas o ‘sozinho’... esse é um lugar mais árido. Eu diria que é quando o nosso ‘só’ vira desamparo, ou quando o silêncio não consola, quando o tempo finge que passa, mas não sai do lugar. Às vezes, nas minhas loucuras, imagino que é aí que mora a beleza da diferença: o estar ‘só’ pode ser escolha. O estar sozinha, não. O primeiro é liberdade; o segundo, kikikikikikkiki, o segundo é a falta de uma boa trepada, onde o seu macho-garanhão faz você ver um sol brilhante em plena meia noite e a cama se desmunhecar afoita e endoidecida sacolejando e perturbando o vizinho do andar de baixo, a cadelinha no cio da moradora ao lado e pasmem, até o velhote setentão de apê de cima.
Que algumas vezes — falo de experiência própria — em nossa vida, sejamos um bocadinho assediada pelo ‘só’ — às vezes, por opção, por paz, por reencontro. Mas, lado outro, que nunca sejamos realmente desamparadas no sentido mais profundo da palavra. Que haja sempre alguém, mesmo distante, que nos habite em pensamento. Que nos alcance em sentimento. Que nos lembre que, mesmo no mais profundo e infausto silêncio, somos, haja o que houver, parte de algo maior. Adelaide Carraro em seu livro ‘Podridão’ deixou claro que ‘no fim, o estar ‘só’ é estar com o mundo em pausa. Estar sozinha é estar sem mundo’. Lya Luft em ‘O tempo é um rio que corre’ voou mais longe e escreveu ‘como quem abre uma janela num quarto antigo — com luz incandescente — com memória à flor da pele e com afeto transbordando por todos os poros, nunca o coração por mais sozinho que se sinta, ou que esteja, jamais estará ou ficará ‘só’’.
Título e Texto: Carina Bratt, de Venda Nova do Imigrante, no Espírito Santo, 10-8-2025
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