terça-feira, 5 de agosto de 2025

O que seria uma ditadura liberal progressista?

O mérito será desvalorizado. As quotas identitárias, glorificadas. O objetivo já não será formar cidadãos conscientes, mas indivíduos obedientes a uma ordem pós-identitária e global

João Maurício Brás

Podemos antever algumas características de uma ditadura liberal-progressista, uma expressão que, à primeira vista, parece contraditória. Esta não se imporá pela força bruta, mas pelo consenso fabricado. Não marcha com botas nem ergue bandeiras vermelhas, mas apresenta-se em palcos internacionais, com discursos sobre dignidade, diversidade e direitos humanos. Não se anunciará como tirania, pelo contrário, apresentará a sua ordem como o culminar da civilização, como a mais justa e tolerante das sociedades possíveis. Assumirá a forma de uma civilização evoluída, onde todos serão livres desde que aceitem os valores justos, progressistas e inclusivos. A sua violência será subtil, mas omnipresente. A sua repressão, invisível, mas eficaz. Será uma ditadura sem rosto, mas com milhares de vozes, repetindo em uníssono o mesmo refrão moral. E quanto mais se proclamar democrática, mais eficaz será na supressão silenciosa da dissidência.

A Moral Única e o Fim da Dissidência

Este regime fundar-se-á na hegemonia de uma ortodoxia moral progressista e numa ordem económica globalista. A igualdade absoluta de reconhecimento, a primazia dos direitos subjetivos e a libertação individual face a todas as estruturas herdadas como a família, a religião ou a identidade nacional serão os pilares sagrados do novo credo. A divergência será tratada como patologia. Qualquer discordância séria será rotulada como ódio, intolerância ou desinformação.

A censura formal tornar-se-á supérflua. Bastará o controlo cultural exercida nos media, nas universidades, nas escolas e no entretenimento para tornar o dissenso socialmente suicida. Tal como previu Alexis de Tocqueville, a liberdade será sufocada não por proibições explícitas, mas por uma tirania suave que se infiltra na alma e a desarma.

O sistema judicial funcionará como mecanismo de reeducação moral, substituindo o ideal de justiça neutra por um novo código ético. Leis ambíguas sobre discurso de ódio, diversidade ou retórica da aceitação serão usadas para perseguir a dissidência. A liberdade de expressão continuará a existir no plano teórico, mas os seus limites serão definidos pelos dogmas da nova moral oficial.

A Democracia Pós-Política

Politicamente, esta ordem assumirá a forma de uma democracia pós-política. As eleições continuarão, mas apenas entre variantes da mesma ortodoxia liberal-progressista. O pluralismo formal mascarará a ausência de alternativas reais. Os partidos que desafiarem o consenso serão marginalizados, os seus líderes desqualificados, as suas ideias ridicularizadas.

As decisões efetivas passarão para as mãos de agências tecnocráticas, tribunais supranacionais, ONG e conselhos de especialistas, entidades sem mandato democrático, mas com autoridade normativa. A soberania será dissolvida em nome da racionalidade global. Como advertiu Hannah Arendt, o totalitarismo moderno não precisa de uniformes nem de partidos únicos. Basta-lhe a aliança entre a ideologia redentora e a administração impessoal.

A Nova Economia Moral

No plano económico, o regime consolidar-se-á por meio da aliança entre o Estado e as grandes corporações. As multinacionais adotarão as agendas DEI (diversidade, equidade e inclusão), ESG (ambiental, social e de governação) e os objetivos da Agenda 2030 não apenas por convicção, mas como instrumentos de poder simbólico e controlo reputacional. A adesão ideológica tornar-se-á critério de empregabilidade: os trabalhadores serão avaliados menos pela competência do que pela obediência à linguagem certa e às causas certas.

A liberdade será confundida com o direito irrestrito de consumir e escolher, mesmo contra a natureza humana e os vínculos comunitários. Tudo será mercantilizado: o corpo, os sentimentos, a identidade, os valores, as relações, a fé.

A repressão já não dependerá da polícia, mas da exclusão económica e digital. Contas serão encerradas, conteúdos desmonetizados, perfis desindexados. Um sistema informal de crédito social, sustentado por identidades digitais e algoritmos de reputação, permitirá punir silenciosamente os desvios sem necessidade de tribunais. Como advertiu Shoshana Zuboff, o capitalismo de vigilância não precisa de violência: basta-lhe o controlo preditivo da conduta.

A Engenharia Social e a Nova Educação

A educação será o principal campo de doutrinação. Desde cedo, as crianças serão expostas a conteúdos centrados na desconstrução das identidades tradicionais e na afirmação de subjetividades fluidas. A escola deixará de ser um lugar de transmissão cultural para se tornar uma fábrica de atitudes e afetos moldados segundo a cartilha progressista.

O mérito será desvalorizado. As quotas identitárias, glorificadas. O objetivo já não será formar cidadãos conscientes, mas indivíduos obedientes a uma ordem pós-identitária e global. A imposição de igualdade de resultados, e não apenas de oportunidades, far-se-á por via legal, sem espaço para debate.

Tradições, símbolos e práticas culturais considerados opressivos serão banidos ou reescritos. Estátuas, feriados e nomes de ruas serão apagados se forem julgados antiprogressistas. A cultura será instrumentalizada. A história, reeditada. A escola, capturada. Como sugeria Foucault, o poder mais eficaz é o que molda o sujeito antes de este ter consciência de si.

O Totalitarismo Simbólico e a Inclusão Cínica

A inclusão tornar-se-á uma retórica omnipresente, presente em campanhas publicitárias, manuais escolares e diretrizes estatais, mas a redistribuição efetiva da riqueza será sistematicamente evitada. A elite, cosmopolita e hiperconectada, continuará a acumular capital e influência, enquanto ostenta a sua virtude em fóruns internacionais e galas corporativas.

A diversidade servirá como verniz moral sobre práticas económicas profundamente iníquas. Os trabalhadores, sobretudo os oriundos de grupos minoritários, serão transformados em ativos simbólicos. A diferença será convertida em capital simbólico. A precariedade será dissimulada sob slogans de empoderamento. A desigualdade estrutural ocultar-se-á sob a ilusão da representatividade. A precariedade laboral será disfarçada por narrativas de empoderamento. A desigualdade estrutural será encoberta pela representatividade superficial. E a censura, justificada por um moralismo redentor.

A Contradição Estrutural e o Autoritarismo Necessário

Este regime será estruturalmente contraditório. Hiperliberal na economia, hiperprogressista nos costumes. Privatizará todos os serviços públicos, eliminará impostos progressivos e desregulamentará os mercados, em nome da eficiência. Mas, em simultâneo, imporá quotas identitárias, campanhas obrigatórias de diversidade e normas morais coercivas. Para manter esta ordem dual, a repressão tornar-se-á indispensável.

A imposição dos valores progressistas far-se-á de cima para baixo, sem mediação democrática. A repressão política, cultural e económica será justificada como proteção contra os novos inimigos da democracia: os populismos, as direitas radicais, os nacionalismos, o conservadorismo. A censura será descrita como responsabilidade social. A vigilância, como prevenção. A exclusão, como justiça.

A Tirania Desejada

Esta ditadura não se dirá ditadura. Apresentar-se-á como guardiã do progresso ético e civilizacional. Usará a linguagem da liberdade para suprimir liberdades, a retórica da diversidade para impor uniformidade, o discurso da inclusão para justificar exclusões.

Será, no seu âmago, uma ordem tecnocrática de conformismo absoluto. Uma tirania suave, mas brutal. Consentida por muitos. Temida por todos os que ousarem resistir. A distopia já não exige campos nem grilhetas. É interior, persuasiva, legitimada por consensos fabricados e desejos formatados. Uma fusão de Orwell e Huxley, onde o medo cede lugar ao entretenimento e a censura se disfarça de empatia.

A nova brutalidade será digital, reputacional, algorítmica. Uma elite económico-financeira e intelectual legitimará o seu domínio em nome de uma suposta evolução moral da humanidade, blindada ao sofrimento das massas e protegida por uma retórica de superioridade ética.

O nome será outro. O método, invisível. Mas a essência permanecerá: uma nova forma de tirania. Mais perigosa por ser inaparente. Mais eficaz por ser desejada. Mais perversa por se dizer libertadora.

Mas como estamos no presente?

No século XXI não faltam os exemplos da consolidação dessa ditadura possível, como o exemplo da hegemonia cultural através de métodos não democráticos e agora confrontada por várias irrupções que o sistema não está a controlar.

Estes métodos vigentes não utilizam sempre a coerção direta, mas são bem impactantes os seus mecanismos subtis de censura, exclusão e reeducação ideológica. Podemos falar, nesse sentido, por exemplo, de um verdadeiro McCarthyismo progressista nos Estados Unidos desde 2010, e da chamada cancel culture, presente em grande parte do Ocidente desde 2015. Esta nova hegemonia não se limita à esfera cultural. Também na política institucional se verifica a exigência de um progressivo esvaziamento do pluralismo ideológico, substituído por um tecnocratismo consensual. A convergência hiperliberal dos partidos europeus desde a década de 1990, sob a bandeira da “Terceira Via”, e o crescente predomínio tecnocrático na União Europeia a partir de 2008, contribuíram para corroer as soberanias democráticas nacionais. Esta UE de democracia pós-política eliminou, em grande parte, o dissenso legítimo e converte a deliberação popular num ritual simbólico, esvaziado de eficácia substantiva.

Outra frente decisiva desta transformação é o campo educativo. A escola, outrora espaço de transmissão do conhecimento e formação do espírito crítico, foi progressivamente instrumentalizada como veículo de doutrinação ideológica. Nos Estados Unidos, e progressivamente no mundo ocidental, assistimos, desde 2010, à introdução de conteúdos baseados na Teoria Crítica da Raça e na pseudociência do género, à reescrita da história oficial e do que é o ser humano quase sempre sem verdadeiro debate público. Esta ortodoxia dominante estende-se também às novas formas de controlo social viabilizadas pela tecnologia digital. Desde 2015, tornou-se prática comum a desmonetização e suspensão de conteúdos considerados não conformes com a doutrina progressista dominante. O exemplo chinês do crédito social mostra até onde pode chegar a vigilância ideológica, e o Ocidente já ensaia os seus próprios mecanismos de segregação digital.

Por fim, esta nova ordem ideológica não é apenas estatal nem meramente cultural: ela representa uma aliança entre grandes corporações e instituições políticas. A adoção de políticas ESG e DEI por empresas como estratégia de branding tornou-se lugar-comum, apesar da manutenção de práticas laborais exploratórias e estratégias de lucro agressivo. A virtude corporativa converteu-se num instrumento de marketing moralizante. Gigantes empresariais proclamam apoio a causas como o movimento Black Lives Matter, ao mesmo tempo que enfrentam acusações recorrentes de exploração laboral em países do Sul Global. Portugal não está imune a este presente obscuro.

Título e Texto: João Maurício Brás, O Sol, 5-8-2025, 10h09

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