João Maurício Brás
Cioran, num admirável texto, A genealogia do fanatismo, explica o que sucede quando animamos as nossas ideias com os nossos delírios e estas se transformam em crenças que têm de se concretizar no tempo. Desse modo, surgem as ideologias e as doutrinas e se consumam as farsas sangrentas. As tentativas de realizar o céu na terra têm centenas de milhões de mortes no seu currículo.
Os piores episódios da nossa
história, excetuando as catástrofes nacionais e as epidemias e pestes
incontroláveis, são o resultado de ideias para salvar o homem. “[...] forcas,
masmorras e condenados só prosperam à sombra de uma fé, - dessa necessidade de
crer que infestou o espírito para sempre. O diabo empalidece comparado a quem dispõe
de uma verdade, de sua verdade.
Somos injustos com os Neros e
com os Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: foram
apenas os sonhadores degenerados que se divertiam com os massacres. Os
verdadeiros criminosos são os que estabelecem uma ortodoxia no plano religioso
ou político, os que distinguem entre o fiel e o cismático”.
Cada época com os seus
salvadores apresenta-se sempre como a solução final, a derradeira palavra, o
viático para a salvação, neste caso na terra. Estes salvadores não perdoam a
rejeição das suas verdades e das suas excitações.
A eventual intransigência de
um inquisidor dominicano não é menor do que a de uma ativista feminista do
século XXI, ou de um movimento antirracista, de um vegan ou de um defensor dos
animais.
A salvação desceu do céu para a terra e secularizou-se. As utopias caracterizam-se sempre como distopias, o assustador admirável mundo novo cega ao século XXI com um potencial científico e tecnológico único, o que torna tudo mais aterrador. Autores como Michel Houellebecq, George Orwell, Aldous Huxley, H. G. Wells, Yevgeny Zamyatin, ou J. G. Ballard traçam retratos factuais deste tempo.
O sonho de um novo humano e
novo mundo tem ressonâncias nazis e comunistas. Ora, nada fazer perante o
avanço das transformações forçadas do neoprogressismo, faz-nos recordar como
certos acontecimentos hediondos germinaram no meio da indiferença e do
silêncio, mas também do aplauso.
Sem as pessoas comuns, o homem
do café, mas também o professor, o médico, o juiz, o merceeiro, os totalitarismos
não teriam subsistido. É o nosso silêncio, a indiferença, o comodismo, a
ausência de pensamento crítico que permitem que se instale qualquer ideologia,
seja ela qual for.
No totalitarismo ocidental
tudo está legislado, desde o que podemos dizer, pensar, comer e como tudo fazer
e dizer para tornar a sociedade melhor. Desde pormenores como proibir a
expressão “melhores amigos” nas escolas, por não ser inclusiva, até impor
livros escolares certificados pela sua pureza ideológica.
É ideal não haver referências
a características masculinas e ou femininas, resquício de uma opressão
masculina que terá inventado a mulher e o homem atribuindo-lhes determinados
papéis.
No códigos penais do século
XXI, ressurgem crimes de expressão e de pensamento. A nova caça às bruxas não é
uma ficção, existe e destrói vidas. As leis mudaram, as pessoas podem ser
despedidas, condenadas pelo que pensam e dizem se dissidirem da doutrina
oficial.
Os oficiantes e apologistas da
dogmática oficial negam essa acusação, tudo é afinal para o nosso bem,
protestam que só incomodam os culpados e zelam pela normalidade e a sanidade
mental de todos. Os passos dos sistemas totalitários voltam a soar, estão a cuidar
de nós, a repor a justiça.
Escrevia Cioran que lhe
bastava ouvir alguém falar sinceramente de ideal, de futuro, ouvi-lo dizer “nós”
com um tom de segurança, invocar os “outros” e sentir-se seu intérprete, para
que o considerasse não só um perigo, mas um inimigo.
É essa a matéria de que são
feitos os carrascos e os tiranos, que dividem a humanidade entre os puros e os
ímpios.
(...)
Texto: João Maurício Brás, in “Os democratas que destruíram a Democracia”, páginas 21 a 24
Digitação: JP, 26-9-2021
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