domingo, 29 de agosto de 2021

Quem tem medo das redes sociais?

João Maurício Brás, que nos privilegiou com uma conversa – João Brás: “Vivemos atrelados à UE que nos dá o dinheiro, como em outros tempos vivemos atrelados às riquezas das Áfricas e dos Brasis.” – é autor do livro cuja leitura estou quase terminando, “Os democratas que destruíram a democracia”. Muito bom.

Há algum tempo, anotei no meu utilíssimo aide-mémoire a pergunta que pretendia responder aqui no blogue.

Pois bem, graças à preguiça e falta de talento deste vosso servidor, encontrei a boa resposta à pergunta do título, nas páginas 128 e 129 do livro do João Brás:

(...)

A época de Karl Kraus 1 foi um laboratório do século XX e, pelos vistos, do século XXI. A mídia e a sua simbiose com o poder político e econômico exemplificam como os que se apresentam como os defensores da democracia são os seus demolidores. A autonomia, o espírito crítico, a investigação, a busca da informação, a liberdade de expressão e de pensamento e a respectiva pluralidade pertencem ao passado.

Se quisermos saber onde ainda há resquícios de democracia, basta seguir as acusações dos autointitulados democratas. As redes sociais estão sob fogo cerrado, seriam a origem das fake news, do populismo; os “democratas” querem mais vigilância e controle, socorrem-se de expedientes como os direitos de autor para controlarem e esvaziarem essas redes. Mas estas são uma alternativa democrática, não são perfeitas, têm aspectos desprezíveis como a falta de qualidade, a ignorância, os insultos, a manipulação, mas garantem pluralidade e uma liberdade assinalável, oferta diversificada de informação e conhecimento, circulação de informação, de ideias, de opiniões, livre escolha e pensamento crítico.

Nunca um tão grande número de pessoas pôde debater, trocar ideias e obter conhecimento e, claro, insultar-se e enganar os outros, mas essa é a história da humanidade. Nenhum sistema humano é perfeito, pode é ser mais ou menos aberto, razoável e permitir escolhas mais sensatas

A reação dos políticos e da mídia oficial e oficiosa do sistema é clara: vigiar, cercear, condicionar e punir tudo o que é livre. O processo de demonização está em marcha, só a mídia aceite pelo poder e em convivência com estes pode informar e formar, os outros são antidemocratas.

Eles detêm a versão certa do mundo e das ideias, os comos e porquês, e decidem até quem e como deve ser contestatário.

A mídia é, atualmente, jornais sem jornalistas, meras agendas de propaganda e publicidade. Mas o mundo encenado pelos roteiristas dessa aparência de realidade está a entrar em crise. O cidadão comum assume, de modo lúcido, cada vez mais a atitude da personagem principal do filme Truman Show.2 Quebrou-se o laço que ligava a pessoa comum às narrativas das elites, predominando ainda o tênue fio do conforto e da abundância de objetos.

O mundo real não é o mundo dessas elites. Estas comportam-se agora como virgens ofendidas quando fenômenos que não previram vêm ameaçar a sua ordem inquestionável.

Os fenômenos antissistema não estão a destruir a democracia, são já sintomas terminais dessa decadência. O livro de Cristopher Lasch já referido é crucial para se compreender como as elites democráticas minaram a democracia.

(...)

1 Nasceu em Viena, Áustria, 1874, e faleceu em 1936. É um pensador decisivo na viragem do século XIX para o século XX, conhecido principalmente como ensaísta, jornalista e dramaturgo, mas também poeta e polemista, estabeleceu um dos diagnósticos mais precisos e prescientes da cultura ocidental e do pesadelo vindouro: o nazismo e o comunismo.

2 Filme de 1998 de Peter Weir e Andrew Niccol. A personagem principal faz parte de um reality show onde vive desde o nascimento. O mundo em que vive é uma encenação, onde apenas ela não sabe que tudo não passa de um roteiro. Um dia Truman começa a suspeitar dessa construção e acaba por descobrir a encenação e que a sua vida mais não foi que a de uma personagem numa narrativa para fins televisivos e comerciais.

João Maurício Brás, in “Os democratas que destruíram a democracia”, páginas 128 e 129

Título e Digitação: JP, 29-8-2021

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