Há algum tempo, anotei no meu
utilíssimo aide-mémoire a pergunta que pretendia responder aqui no
blogue.
Pois bem, graças à preguiça e
falta de talento deste vosso servidor, encontrei a boa resposta à pergunta do
título, nas páginas 128 e 129 do livro do João Brás:
(...)
A época de Karl Kraus 1 foi
um laboratório do século XX e, pelos vistos, do século XXI. A mídia e a sua
simbiose com o poder político e econômico exemplificam como os que se
apresentam como os defensores da democracia são os seus demolidores. A
autonomia, o espírito crítico, a investigação, a busca da informação, a
liberdade de expressão e de pensamento e a respectiva pluralidade pertencem ao
passado.
Se quisermos saber onde ainda há resquícios de democracia, basta seguir as acusações dos autointitulados democratas. As redes sociais estão sob fogo cerrado, seriam a origem das fake news, do populismo; os “democratas” querem mais vigilância e controle, socorrem-se de expedientes como os direitos de autor para controlarem e esvaziarem essas redes. Mas estas são uma alternativa democrática, não são perfeitas, têm aspectos desprezíveis como a falta de qualidade, a ignorância, os insultos, a manipulação, mas garantem pluralidade e uma liberdade assinalável, oferta diversificada de informação e conhecimento, circulação de informação, de ideias, de opiniões, livre escolha e pensamento crítico.
Nunca um tão grande número de pessoas pôde debater, trocar ideias e obter conhecimento
e, claro, insultar-se e enganar os outros, mas essa é a história da humanidade.
Nenhum sistema humano é perfeito, pode é ser mais ou menos aberto, razoável e
permitir escolhas mais sensatas
A reação dos políticos e da mídia oficial e oficiosa do sistema é clara: vigiar, cercear, condicionar e punir tudo o que é livre. O processo de demonização está em marcha, só a mídia aceite pelo poder e em convivência com estes pode informar e formar, os outros são antidemocratas.
Eles detêm a versão certa do
mundo e das ideias, os comos e porquês, e decidem até quem e como deve ser contestatário.
A mídia é, atualmente, jornais
sem jornalistas, meras agendas de propaganda e publicidade. Mas o mundo
encenado pelos roteiristas dessa aparência de realidade está a entrar em crise.
O cidadão comum assume, de modo lúcido, cada vez mais a atitude da personagem
principal do filme Truman Show.2 Quebrou-se o laço que ligava
a pessoa comum às narrativas das elites, predominando ainda o tênue fio do
conforto e da abundância de objetos.
O mundo real não é o mundo
dessas elites. Estas comportam-se agora como virgens ofendidas quando fenômenos
que não previram vêm ameaçar a sua ordem inquestionável.
Os fenômenos antissistema não
estão a destruir a democracia, são já sintomas terminais dessa decadência. O
livro de Cristopher Lasch já referido é crucial para se compreender como as
elites democráticas minaram a democracia.
(...)
1 Nasceu em Viena, Áustria, 1874, e faleceu em 1936. É um
pensador decisivo na viragem do século XIX para o século XX, conhecido principalmente
como ensaísta, jornalista e dramaturgo, mas também poeta e polemista, estabeleceu
um dos diagnósticos mais precisos e prescientes da cultura ocidental e do
pesadelo vindouro: o nazismo e o comunismo.
2 Filme de 1998 de Peter Weir
e Andrew Niccol. A personagem principal faz parte de um reality show onde vive
desde o nascimento. O mundo em que vive é uma encenação, onde apenas ela não
sabe que tudo não passa de um roteiro. Um dia Truman começa a suspeitar dessa
construção e acaba por descobrir a encenação e que a sua vida mais não foi que
a de uma personagem numa narrativa para fins televisivos e comerciais.
João Maurício Brás, in
“Os democratas que destruíram a democracia”, páginas 128 e 129
Título e Digitação: JP,
29-8-2021
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