domingo, 22 de agosto de 2021

[As danações de Carina] De quando minha vida tinha borboletas

Carina Bratt 


TODOS OS DIAS
, assim que acordava, antes de pular da cama, eu ligava para o telefone de papai. Era para lhe pedir a benção e desejar que naquele dia, tudo corresse bem em seu trabalho. Ao final, antes de encerrar a ligação, que ele voltasse logo para casa. Eu estaria, como sempre, lhe esperando, junto com mamãe. Ambas sentadinhas no portão. Mamãe conversando com dona Consuelo e dona Diná e, eu, lendo um dos muitos romances existentes na biblioteca que ficava num espaço ao lado da sala.

O fato é que quando seu carro surgia na esquina da rua, final da tarde, eu me sentia feliz com a sua chegada de regresso ao lar. As nossas conversas de todas as manhãs, sempre as mesmas. Nunca mudava. Igualmente, nos domingos, a pedida do cardápio, na pizzaria. Uma bitelona grande, tamanho família, de oito pedaços, quatro queijos e azeitonas, com refrigerante de guaraná bem gelado.
— Oi minha princesa, tudo bem?
— Tudo papito. Sua benção.

— Deus te abençoe...
— O que você está fazendo?
— Me preparando para colocar os novos soldados em treinamento. Fica com Deus!
— Você também. Eu te amo, papito...
— Eu também te amo, minha princesa...

Se fosse colocar na ponta do lápis, acho que não ficaria, como não ficou, com certeza, nem um dia do ano, as nossas formalidades fora desse contexto. Todo santo dia, repetidamente, chovesse ou fizesse sol, a cena vinha à baila.

Papai sorria feliz, envolto numa emoção contagiante, que chegava até mim, em forma de uma magia transbordante. Militar linha dura, o velho condutor da família Bratt, seguia à risca seus propósitos e objetivos. Nunca se atrasava em seus compromissos. Amava a mamãe intensamente e, quando em casa, procurava ficar ao lado dela, sem arredar pé. Bonito ver os dois no cotidiano das folgas dele, andando de mãozinhas dadas, indo à padaria, à feira, ou ao supermercado. Atencioso, gentil e cavalheiro, mandava flores, escrevia bilhetinhos com poesias apaixonadas...

À noite, nós três, na sala de tevê, nos acomodávamos no sofá com uma bacia gigantesca de pipocas e um jarro enorme de suco de manga, para as novelas e os jornais. Até que um dia, sem aviso, sem dizer os motivos, papai resolveu partir. Assim, do nada, sem mais nem menos. Seguiu, meu velho, para uma viagem sem volta, sem adeus, sem um até breve. Deixou por toda a casa e não só nela, dentro de nós, um vazio imenso, um silêncio comprido e pesado, denso e constrangedor, entrelaçado a uma dor insidiosa e infinita que nunca mais desgrudou.

Às vezes, na minha saudade, apesar dos janeiros passados, eu tenho a impressão de que papai está por aqui. Ou melhor: penso que se levantou cedo, antes das cinco da manhã, tomou seu banho, dividiu a mesa do café com mamãe e, em seguida, foi até meu quarto, me deu um beijo e rumou para o quartel. Me pego despertando por volta das nove horas e ligando para ele. Só que papai não atende. O telefone toca insistentemente, se esgoela até cair e ele, meu Deus, apesar de saber que sou eu, papito não me retorna. Eu deveria ter gravado uma mensagem com a sua voz...

‘Oi minha princesa — perguntaria ele. Tudo bem? Tudo papito, eu responderia de pronto. — Sua benção. — Deus te abençoe... O que você está fazendo? Me preparando para colocar os novos soldados em treinamento. Fica com Deus... Você também. Eu te amo, papito. Eu também te amo, minha princesa...’.
Com esta tecnologia de ponta, a nosso favor, eu nunca pensei nessa possibilidade da ausência futura. Do vazio, do desespero insaciável e marcante. Eu não me lembrei do fatídico nunca mais...

Eu poderia ter gravado uma saudação com ele me contraditando com a sua voz adocicada, com seu sorriso mavioso, com o regozijo inebriante que o invadia na hora em que me retribuía com a afabilidade da sua alma em festa. Juro, eu não pensei nessa possibilidade. Gravar a sua voz. Aliás, eu sequer cogitei que chegaria um dia em que ligaria para ele (como agora) e o telefone simplesmente ficaria retido numa mudez taciturna e melancólica.

Quem sabe, eu não me sentisse (ainda que na repetência de uma simples gravação) tão desabitada do seu amor, tão volúvel e esvaziada do seu calor humano e, sobretudo, não me pegasse tão melindrosamente insignificante e assombrada, presa, amarrada e amordaçada a uma sensação de inércia impotente. Talvez seja exatamente por isto que na maioria das vezes me flagro parada diante do espelho, formalizada numa culpa ominosa, olhando para dentro de mim mesma, com aquela sensação horrenda de que o céu inteiro se desprendeu lá de cima e se esborrachou por sobre os meus costados e, de roldão, o meu mundo se fez aterradoramente abissal.

Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha no Espírito Santo. 22-8-2021

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