Carina Bratt
AS PALAVRAS que eu queria dizer e não consigo, parecem encarceradas dentro da minha alma, como sal molhado em saleiro entupido de um desses restaurantes vagabundos de beira de estrada. Os meus dias se movimentam rápidos, numa dança tresloucada, como vestidos antigos de mulheres espevitadas passando lá embaixo, na rua e eu, aqui da minha varanda, me sinto vazia por dentro, oca, sem nada, incompleta, como uma desertora lunática perdida num mundo de pirados e birutas varridos de um hospício onde todos os amalucados se mandaram voando em quebradiças vassouras de piaçavas.
Devo estar entrando na linha da neurastenia das moças quase às portas dos trinta e cinco. Faço parte de uma geração retrógrada vivendo como uma potranca menopauseada, solta num pasto agigantado, sem saber, ao certo, que direção seguir. Em minha cabeça, meus arquivos de imagens me confundem a memória. Há um embaralhamento de coisas e ideias, ideias e coisas, imagens retorcidas, distorcidas, trituradas, fragmentadas. Fatos passados e presentes que não se coadunam, ou não se harmonizam à minha realidade atual. Penso que deixei escapar um momento crucial que abandonei desperdiçado em algum ponto da minha trajetória.
Uma quadra única, que não capturei. De repente, pareço ter a sensação medonha de que desaparecerei do mapa, como a pequena e bucólica Atafona, embasbacada diante de suas ruínas cada vez mais gritantes, à mercê de um mar imenso e sem fim que não se cansa de gritar, ‘estou aqui, vou te levar para as profundezas de minhas entranhas’ Percebo, apesar de estar no conforto de meu apartamento, muros ensanguentados, paredes de fumaças negras e sujas e eu, perdida, sem rumo, sem norte, sem lenço, sem documento, dando uma de Caetano debaixo de caracóis sem cabelos para me agarrar.
Largada, renegada, desleixada, enjeitada, entremeada a tudo, caminho a passos largos, numa espécie de cortejo fúnebre ao lado de uma carcaça de um animal há anos extinguido. A minha própria derrocada, diga-se de passagem. Resumindo o meu hoje, o meu agora, o meu ‘já’, este antecipado que me abraça e alimenta os meus dias e passos, que me coloca nas situações as mais diversas, tenho a certeza quase palpável de que a minha vida (vista por um ângulo esquizofrênico) está mais cheia de pequenos buracos que uma peneira. Sou como grãos fugidos de plantações clandestinas, que se desprenderam e se refugiaram diante de meus horizontes.
Imagino, pelo andar da carruagem, que eles pretendem ofuscar meus horizontes, num tipo ritual macabro de dores jamais sentidas. Meu corpo está estático, inerteado como uma flor solitária e diferente, que nasceu num jardim desta imensa metrópole, não para enfeitar, todavia, para ser massacrada, pisoteada, destroçada pelas outras coisas belas que enfeitam os olhos e os sorrisos de quem passa. Alguém disse e eu li, não sei onde, ‘somos a soma dos nossos dias vividos’. Encarando a coisa toda por esta ótica, a adição final dos meus números terminou num resultado errôneo.
Não importa! Seguirei em frente, firme e forte. Seguirei adiante, resoluta e confiante. O mundo está bonito ali fora. De mais a mais, estou viva, leve, solta, respirando e com saúde. Meus braços e pernas, os olhos perfeitos, o coração batendo a mil por hora. Creio, piamente, tirando a patacoada da polícia inoperante, grosso modo, um bando de meninos travestidos de palhaços e escudados numa força tarefa (para ingleses verem e assistirem de camarote), que não consegue capturar um simplório e parvo Lázaro Barbosa, creio e repito, ter toda uma vida pela frente. Não vejo movimentos suspeitos ou perigosos em torno de minha existência, desde a jogada dos aviões nas Torres Gêmeas.
Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha no Espírito Santo, ES. 27-6-2021
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