domingo, 20 de junho de 2021

[As danações de Carina] Linhas byronianas

Carina Bratt

O amanhecer é um pássaro ligeiro. Leva nas asas a escuridão da noite’.
do livro ‘Asas’ de Jaime Vieira.
 

HOJE ESTOU me sentindo como se estivesse sendo afetadamente vexada e espremida contra um enorme e compacto isolamento de vidro. Tipo uma separação consistente e maciça, maior que a porcaria daquele quadro cenográfico imbecilizado, na verdade, um game show que ficou conhecido, aqui no Brasil, como The Wall (ou a Parede), exibido no programa do Luciano Huck, que a Rede Globo manda para o ar, todas as tardes de sábado.

Mesmo fluxo, enquanto tento escapar da maldita parede envidraçada, pirralhos, em polvorosa, brincam numa varanda próxima à minha torre. Cacafelhos barulhentos e sapecas, gritam e pulam, saltam e se esgoelam numa espevitação fora do normal. Toda esta confusão perturba os meus ouvidos, fere a minha paciência pra lá de impaciente. Minha cabeça estropia e lateja. Para completar, tenho a impressão de estar sendo vigiada por mil câmeras.

De repente, o vidro que me esmaga e me amassa, se desembaça e me deixa completamente despida das vestes. Literalmente nua, padeço de vergonha incontida, num reality show cafona, onde uma enxurrada de embasbacados fotografa cada pedacinho dos meus tremeliques e assombros, receios e estuporações. Tento me restabelecer, me recompondo. O barulho que faço é tão sutil quanto uma serra elétrica fora de controle. 

À custo, consigo olhar para a rua, lá embaixo. Iluminada pelas luzes bruxuleantes, a visão que tenho da avenida, vista daqui da altura do meu andar, aumenta, assustadoramente os meus desconfortos. Chega a me dar calafrios na alma, com respingos no coração frangalhado. Sem dar um minuto de trégua, os ‘patricinhos’ insuportáveis seguem deblaterando, alariando num fuzuê pesado, como hipopótamos descendo uma ladeira íngreme em insuportáveis carrinhos de rolimã.

Ainda com o rosto achatado contra o vidro gigantesco, as minhas tentativas de fuga empinam ondas de desespero que se lançam rasgando as paredes frias do meu apê. Num piscar de olhos, do nada, sem que espere por uma folga, ou por algo que me desagarre, ou me liberte, caio no chão, me estabano no tapete da sala, num puro reflexo de exaustão que se perde e se esvai, como num despertar entedioso navegando fantasmagoricamente no meio do começo de noite.

Alguém toca a campainha. Uma, duas, cinco, vezes. Droga! Quem será assim tão insistente? Não espero por ninguém. Não tenho parentes próximos. Meus vizinhos de andar, não vão além de um vazio e sem sabor ‘bom dia’, um insosso ‘boa tarde’, um estragado e indiferente ‘boa noite’, ou um monótono ‘olá’, destituído daquela magia do encantamento alegre e saltitante que deveria sempre anteceder e enaltecer um encontro, ainda que às carreiras, nas portas dos elevadores.

Retardo um bocado a me recompor e chegar até a porta. Ao escancarar para o corredor, o encontro vazio, completamente às escuras. Espio, desconfiada, de um lado e de outro e não me deparo com vivalma. Apenas as luzes de emergência se fazem presente, quebrando o silêncio da escuridão. Não, os alaridos dos moleques seguem mais densos e pesados. Volto a me trancar. Caminho até a cozinha. Me sirvo de um café. Degusto a bebida à goles poucos, como se quisesse gravar no paladar o seu sabor quentinho e adocicado.

Devo estar ficando meio pirada. Tão nova, tão lúcida, tão centrada nos objetivos, e assim do nada, ouvindo campainha tocando, deixando meus medos largados em cada canto do apartamento. Me vejo perdida, como uma espécie desusada de pecadora reincidente, idiota robotizada e contumaz dos meus próprios erros e desacertos. Acho que sem querer, virei navegante de um infinito inexistente.

Pior, muito pior. Me fiz em nada. Nada sou, portanto. Virei escrava de uma rotina chata. Me transformei em serviçal de dias e noites indigestos, me tornei mucama consoladora de todos os dissabores fastidiosos. Os piás na varanda da torre ao lado, continuam em tumultuada fuzarca. La embaixo, a avenida segue a sua normalidade sem atropelos. Decido chegar até a varanda. Chego. Olho para baixo. A altura é imensurável.

Subo no peitoril. Subo e pulo. Salto, os braços abertos. Um berro lancinante me escapa da garganta. Estou caindo... caindo... caindo... vou me esborrachar todinha na calçada... ou ficar presa nos fios de alta tensão... Meu Deus, o suicídio não tem volta, não tem perdão. Diabos, vou me queimar nas profundezas. Não verei a Salvação, tampouco a Luz Divina, menos ainda a Gloria do Pai. O chão se aproxima... o chão... a calçada... Socorrrrrooooo!... ACORDO EM MEU QUARTO E SALTO DA CAMA, SUANDO EM BICAS.

Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo. 20-6-2021

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