Cuidado: você pode ser condenado de uma
hora para outra como 'fascista', 'extremista de direita/inimigo da democracia',
ou até como 'genocida', se não prestar atenção no que está dizendo
J. R. Guzzo
Num país onde a vida política
se degradou a tal ponto que um cidadão com nove processos penais nas costas
vira o relator de uma “CPI” que tem pretensões de restaurar a moralidade
pública, o “novo normal” passou a ser tudo o que é anormal. Cabe na cabeça de
alguém que uma substância química, por exemplo, ou um tipo de veículo sobre
duas rodas possam se tornar questões de vida ou morte para determinar o que é
politicamente certo ou errado, ético ou imoral, bom ou ruim? Não, não é — não
pela lógica comum. Mas no Brasil de hoje é isso, exatamente, o que se pode
esperar em matéria de ideias. Se uma “CPI” como essa da covid pode ter esse
relator que está aí (para não falar do presidente, que foi investigado por
corrupção pesada e teve a própria mulher e três irmãos presos pelo mesmo
motivo), por que haveria problema com qualquer outra coisa? Vida que segue.
Aceita-se com a maior
passividade do mundo, assim, que assuntos estritamente técnicos, ou da mais
completa desimportância, se tornem o marco regulatório que define quem o
sujeito é, dos pontos de vista político, moral e humano. Não é só no Brasil, é
claro, que as coisas andam assim. Lá fora, por exemplo, o “bem” — ou tudo o que
recebe uma certidão de “coisa de esquerda” — prevê que o sujeito assuma posições
firmes a favor da inclusão de homens nas equipes femininas de esporte, ou
contra o aquecimento da calota polar. O “mal” — ou tudo o que leva o carimbo de
“coisa de direita” — é o exato contrário. Aqui, a coisa fica pior por conta do
ambiente cada vez mais envenenado que envolve a vida política. Trata-se, mais e
mais, de um processo de degeneração. Os temas em que há divergências políticas
legítimas vão sendo crescentemente contaminados por questões que são neutras
por sua própria natureza, ou pelo bom senso mais elementar. O resultado é um
desastre.
Bolsonaro está a favor? Então
só pode ser ruim
Cuidado, portanto: você pode ser condenado de uma hora para outra como “fascista”, “extremista de direita/inimigo da democracia”, ou até como “genocida”, se não prestar atenção no que está dizendo — e no que estão dizendo a mídia, as classes intelectuais e o circuito STF-OAB-MST-CNBB-PT-etc. É relativamente simples. Faça uma lista com as coisas que você, pessoalmente, acha corretas, lógicas e decentes; faça uma outra, ao lado, com tudo o que você acha que está errado, ou não concorda. Em dois minutos fica claríssimo que a esquerda brasileira e mundial é totalmente contra aquilo que está na primeira lista; é totalmente a favor do que está na segunda. E as questões — são tantas, não é mesmo? — em relação às quais o cidadão não sabe, honestamente, o que é certo e o que é errado? Para obter solução imediata, basta avançar para o passo seguinte: verifique o que a esquerda está dizendo a respeito e acredite no oposto. Pronto. Operação concluída com sucesso.
A variante brasileira desse
vírus apresenta um elemento a mais: Jair Bolsonaro. Por motivos que em grande
parte permanecem obscuros, tudo o que tem algum ponto de contato com a imagem
do presidente da República fica automaticamente mais dramático, no Brasil ou no
exterior. No caso, o volume de ódio acumulado contra ele nos circuitos mentais
de seus inimigos (praticamente ninguém trata Bolsonaro apenas como adversário)
tornou-se tão absoluto que o presidente acabou se transformando, em si mesmo,
num divisor de águas entre o bem e o mal, o certo e errado, o que pode e o que
não pode. Mais ainda que os sinais de “esquerda” ou “direita” é ele, hoje, que
define as coisas. Bolsonaro está a favor? Então só pode ser ruim; você é
obrigado a ficar contra. Bolsonaro está contra? Então só pode ser bom; você é
obrigado a ficar a favor.
Serve para tudo. O grande clássico do gênero, naturalmente, é a cloroquina. O Conselho Federal de Medicina, órgão máximo para todas as questões ligadas à atividade médica no Brasil, decidiu, com clareza acima de qualquer objeção, que os médicos são livres para indicar a seus pacientes o tratamento que julgarem mais adequado para a covid, incluindo-se aí a aplicação de medicamentos como a cloroquina. Não é um palpite — é a palavra do CFM, a entidade encarregada pela Constituição brasileira de lidar com esse tipo de assunto. Mais: dezenas de milhares de médicos trataram seus clientes com cloroquina, ivermectina e outras substâncias farmacêuticas. A denúncia intransigente da cloroquina, apesar disso, tornou-se uma causa sagrada. Jamais um medicamento foi tão amaldiçoado como ela — pela ira das condenações, é melhor tomar uma dose dupla de formicida logo de uma vez.
Por que essa fúria toda? Uma
coisa é certa: Bolsonaro disse lá atrás, assim meio por cima, que a cloroquina
poderia ajudar. Ele e todos aqueles médicos — inclusive um que foi secretário
de Saúde de São Paulo, no tempo em que a cloroquina ainda não era maldita, e
receitou a droga para si próprio. A coisa desandou aí, e depois disso não se
arrumou mais. No exterior também houve e há objeções à utilização da substância
nas fases iniciais da covid. A Organização Mundial da Saúde suspendeu as
pesquisas que fazia a respeito (e depois recomeçou, quando se revelou que havia
utilizado referências suspeitas para decretar a suspensão), e muita gente
aponta a “inexistência de provas científicas” quanto à eficácia do medicamento.
Não se trata, portanto, de exclusividade brasileira. Mas em nenhum outro lugar
do mundo a cloroquina foi capaz de desencadear o vendaval de paixões que causou
no Brasil. Apesar do CFM e dos resultados que os médicos apresentam a seu
favor, é a “droga maldita” da nossa era; os monopólios norte-americanos que
controlam as redes sociais no Brasil, inclusive, banem das suas operações quem
se julga no direito de falar da cloroquina sem condenar expressamente o seu
uso. Em nenhum outro lugar do mundo, ao mesmo tempo, há um Bolsonaro. Pense
durante 30 segundos e chegue às suas conclusões.
Outro caso realmente
extraordinário é esse do “voto impresso”, ou das demandas por um sistema de
votação em que os resultados possam ser verificados de forma mais completa do
que hoje. Bolsonaro é a favor — ele e mais centenas de políticos, mas esqueça
essas centenas de políticos e fique só nele. Pronto: o voto impresso, que
historicamente era uma reivindicação de políticos como o ex-governador Leonel
Brizola, e que de qualquer maneira é uma questão essencialmente técnica, virou
obra de Satanás, direto na veia, de um dia para outro. Não se permite, nem
mesmo, o debate sobre o tema; a simples menção de que talvez, quem sabe, eventualmente,
se possa falar a respeito — só falar, não mais — já é tida como uma tentativa
de golpe de Estado. Argumentar por um sistema de votação mais seguro passou a
ser uma ameaça à democracia. O sistema atual, segundo a visão anti-Bolsonaro da
vida, é perfeito, e não pode ser tocado; o debate livre tornou-se um
retrocesso. Como a tentativa de melhorar alguma coisa pode ser um “retrocesso”?
Como seria possível destruir o estado de direito com o voto impresso? E o
Congresso — não estaria autorizado a aprovar uma lei nesse sentido? É insano.
Mas Bolsonaro está a favor — e isso explica qualquer insânia.
Até as motos entraram na lista negra. Apareceram na mídia, dias atrás, condenações de alto a baixo ao seu uso — elas geram poluição, consomem combustíveis fósseis, matam gente. Mas por que só agora as motos viraram a máquina do mal? Porque Bolsonaro, vestindo blusão de couro (e sem máscara), participou de um desfile em seu próprio apoio, em São Paulo. É como a cloroquina e o voto impresso: caíram de pau em cima de uma máquina. (Os juízes que condenaram as motos não têm nenhuma sugestão a fazer a respeito dos 300.000 motoboys que circulam todos os dias em São Paulo para ganhar o próprio sustento.)
Naturalmente, quem sabe o que está fazendo — Lula, por exemplo, sabe muito bem — desanca Bolsonaro porque quer ir para o lugar dele no governo. Aí é perfeitamente compreensível, porque política é isso mesmo. Mas muitas pessoas (e gente bem instruída, frequentemente) se jogam no furor anti-Bolsonaro com determinação de fanático religioso; abriram mão do hábito de pensar, e passaram a agir em obediência a uma compulsão. A questão, possivelmente, diz respeito tanto à psiquiatria quanto à política.
O presidente da República, ao
que parece, está servindo de polo para atrair a culpa por tudo o que há de
errado no mundo e principalmente, talvez, na vida individual de cada um.
Frustrações, mágoas, problemas de trabalho, dificuldades do dia a dia,
conflitos pessoais, falta de dinheiro — nada disso é culpa sua, ou das suas
limitações, ou das circunstâncias, ou da vida; é tudo “culpa do Bolsonaro”.
Fica imensamente mais fácil pensar assim.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista Oeste, nº 65, 18-6-2021
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