domingo, 6 de junho de 2021

[As danações de Carina] Deu ruim

Carina Bratt  

A LARISSA TINHA dezesseis anos e Lorraine acabara de chegar na faixa dos quinze. Como tampa e panela, meia e sapato, geladeira e congelador, andavam sempre grudadas uma na outra, notadamente quando a Lorraine deixava Campos de Jordão em São Paulo e viajava para Brumadinho para passar as férias escolares. Este fato nunca mudava. Chegava as férias, lá ia a Lorraine, de mala e cuia, para a casa de Larissa. Apesar de se falaram todos os dias, via WhatsApp, de mandarem mensagens, quase de hora em hora, e de se verem, por vídeo chamada, as duas nunca se olvidavam de colocarem, como se diz, as ‘fofocas em dia’. Neste ímpeto promissor, choravam, cantavam, falavam de tudo.  

Relembravam, notadamente, os anos e as férias passadas. No mais, riam a bom sorriso. Na pequena cidade, até ficaram conhecidas pelos mais chegados que conviviam com as duas, como A Gata e o Rato —, tipo assim —, uma moderna versão bem aprimorada do casal vinte, ou mais precisamente de uma série dos idos de 1985 que fez muito sucesso tendo como protagonistas principais, os atores Bruce Willis e Cybill Shepherd. Às vezes, as duas brigavam, se desentendiam, mas seguiam juntas provando que a amizade estava sempre acima de pequenas picuinhas. Em uma destas férias, as indissolúveis saíram, à começo de tarde, para um passeio pela cidade.  

A represa da Córrego do Feijão, ainda não havia ficado famosa, em face do desastre que aconteceu, onde quase toda a cidade se viu varrida por água abaixo e, a maioria das pessoas perdeu tudo, sem falar no elevado número de mortos e desaparecidos. Larissa, de namorico, ‘ficava’ com um garoto cinco anos mais velho que ela. O rapazola, ou o José Beto, trabalhava com o pai, numa lanchonete da família, perto da estação de trem e, as duas, resolveram ‘dar uma passada’ para um lanche rápido, aproveitando a ocasião para marcarem alguma coisa quando ele largasse a função, por volta das dezoito horas. Em face disto, após a tomada de um copo de suco, se retiraram.  

Meio do caminho, Larissa comentou com Lorraine que o seu querido José Beto tinha um irmão (que ela ainda não conhecia, nem nunca vira). Diziam, à boca miúda, parecido com ele, o José Beto, claro, um jovem que a comunidade afirmava ser tão ou mais bonito que o seu ‘primeiro amor’. Tomada por uma curiosidade enorme, a Lorraine cismou de conhecer o tal irmão ‘gato’ do José Beto e, assim, com este pensar, mudaram a rota, com uma passada rapidinha que culminaria na residência do belo exemplar masculino. Enquanto seguiam, combinaram que diriam à mãe dele que eram apenas ‘amigas’ (Larissa também não conhecia a mãe do rapaz) e, quem sabe, por educação, a ilustre senhora as convidasse para entrar, serviria um café e Lorraine teria condições de conhecer o tal irmão que desde então passara a ser como uma espécie de tentação em sua cabecinha.  

Ao chegarem de frente ao muro da estonteante morada, Larissa bateu palmas no portão. Nada. Quando se dispunha a se fazer presente de novo, pela segunda vez, surgiu, no umbral da porta da sala, um rapaz de porte elegante, alto e bem fornido. A criatura tinha uns olhos azuis brilhando como duas bolinhas retiradas de um céu maravilhoso e resplandecente. Neste momento, diante daquela beleza rara, tanto a Lorraine, como a Larissa, ficaram pasmas e paralisadas, como se tivessem presas ao chão da calçada. O belo, por sua vez, ao se deparar com aquelas duas estonteantes, se aproximou ao tempo em que indagava, com uma voz macia que fazia cócegas no mais profundo do ego.
— Pois não? O que desejam?
Se tivessem combinado, não sairia tão perfeita a resposta. Ambas, numa mesma voz, responderam:
— Viemos até aqui para falar com o Dudu.
O rapaz se abriu num sorriso envolvente e acolhedor. Por questão de segundos, fez com que as duas saíssem das amarras do portão e batessem com seus respectivos espantos numa espécie de teto invisível, bem lá em cima, no topo do firmamento.
— Sou todo ouvidos. Sejam bem-vindas. Eu sou o Dudu, em carne e osso. A que devo a honra?

Um silêncio sepulcral se formou em meio às duas. Diante da mudez das recém-chegadas, o deus grego reforçou o que havia dito.
— Que maravilha. Com vocês duas na minha porta, posso dizer que ganhei o dia. Sem levar em conta o fato de que não sabia, pelo menos até agora, que possuía duas amigas tão alegres, simpáticas e saltitantes. Vamos, entrem. O portão não está trancado.
Em questão de milésimo de segundos, o sorriso do indivíduo se transformou em um quadro vergonhoso para elas. Larissa e Lorraine não sabiam onde esconder a vergonha e não só ela, a timidez enorme que, de repente, caíra em meio as suas faces.

Atarantadas, ora Larissa olhava para Lorraine e Lorraine devolvia a frustração, encarando Larissa, sem mencionar a vermelhidão que tomara conta das suas faces e covinhas suaves, numa espécie de ansiedade indescritível. Larissa, que ‘namorava o José Beto, tentando quebrar aquele momento inoportuno, resolveu tirar a sua máscara e, ao fazê-la cair, salvar as duas de um vexame maior.
— Nos perdoa, Dudu. Fizemos uma baita confusão. Na verdade, queríamos falar com o José Beto... Viemos aqui para isto...
— Entendi. Dudu! José Beto. Confundiram os patronímicos. Acontece. Às vezes dá um branco total... Eu mesmo cansei de me meter em encrencas com problemas desta monta...

Àquela hora, quase perto das três, José Beto tomava o café da tarde. Ao ouvir o seu consanguíneo em animada conversa na porta principal e, sobretudo, por reconhecer uma das vozes, como a de sua ‘namorada’, achou por conveniente ir dar uma espiada. Ao se certificar de que não errara, convidou gentilmente as duas para adentrarem e se sentarem com eles, à mesa posta.
— Macacos me mordam, Larissa. Por que você não me disse, lá na lanchonete, que pretendia vir até aqui em minha casa acompanhado da Lorraine? Acabei de sair do trabalho. O pai me deu uma carona. Poderíamos ter vindo juntos, papeando... Pelo visto, percebo que tiveram o prazer de conhecer meu irmão. Dudu, está é Larissa e a bonequinha, ao lado dela, Lorraine.

Terminada as apresentações, concluiu, eufórico:
— Vamos, acabem de chegar... Pulem para dentro.
Larissa alquebrada pelo opróbrio da gafe, e pior, ultrajada pela humilhação que sentia, não falou. Ao invés disto, gritou, a plenos pulmões. Ela, realmente gritou:
— Chega deste papo sem noção. Vamos, Lorraine. A volta é meio longe. Não queremos chegar tarde...
— Esperem, tomem pelo menos um gole de café — replicou José Beto. — A mãe acabou de fazer... — concluiu emendando o Dudu, nesta altura completamente embasbacado com a formosura da amiga da namorada do seu irmão.
Qual o quê! Literalmente as duas cobiçadas deram meia volta e picaram a mula.

Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo. 6-6-2021

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