domingo, 9 de maio de 2021

[As danações de Carina] Sempre assim, com a esperança obstinada

Carina Bratt

Às vezes me pego prisioneira num labirinto de coisas: casa, móveis, louças em cima da pia da cozinha, roupas para serem jogadas na máquina de lavar, passar um pano no chão, dar uma geral no banheiro, tirar o pó dos móveis, trocar o lençol da minha cama, a fronha, colocar o cobertor e o edredom no sol... Entrementes, o telefone celular me faz sair às carreiras para atender e tomar conhecimento de quem está precisando falar comigo.

Foto: Internet

Tudo assim numa loucura bizarra, única e incalculável, não necessariamente nesta ordem paranoica que acima enumerei. A palavra ‘desordem’, creio, pegaria melhor, cairia, a bem da verdade, de excelente tamanho. Como luvas de pelica. Banho tomado, roupas vestidas, sapatos apertados nos pés, lá vou eu... No corredor do prédio onde tenho meu cantinho sagrado, a demora do elevador me tira do sério. Sempre que preciso dele, o infeliz está lá nos quintos do fundo do poço.

Na avenida, em direção ao escritório da empresa, não é diferente. Meu carro em meio a uma ‘cáfila’ de carros buzinando, ônibus soltando fumaças, motos poluindo o ar pesado com seus escapamentos abertos cruzando por todos os lados, e o pior, sem o devido respeito aos veículos. Queria saber quem inventou o ‘sistema corredor’, abrindo a porteira e permitindo que estes loucos, em suas máquinas barulhentas saíssem por ai, como cavalos desembestados como se tivessem num pasto de proporções gigantescas.

E a balbúrdia não para por ai: bicicletas, pessoas fora das faixas de pedestres, sinais (ou semáforos) vermelhos a cada esquina, todos programados erradamente, sem o mínimo de sincronização. Sempre, neste horário, entre dez e onze horas, em que preciso ‘pegar’ a Marginal, o caótico do trânsito faz questão de se mostrar moroso e indelicadamente assarapantado e congestionado. Meu Deus, o que é que estou fazendo aqui?! Onde estava com a cabeça, quando sai do conforto do útero da minha mãe para vir morar nesta bagunça desenfreada e sem precedentes?

Procuro ficar calma. Não me estressar. Um dia ainda irei morar definitivamente no meio do mato. Talvez, em breve, arranje uma Shangri-La, um lugar esquecido no meio do nada, para viver o Horizonte Perdido, não outro senão o do paraíso idealizado pelo escritor James Hilton. Nele, longe da terra, das correrias do dia a dia, criar minhas galinhas, minhas vaquinhas, um cavalo, uma charrete, árvores a se perderem de vistas, e o mais importante: ver meus passarinhos cantando soltos todas as manhãs e vindo comer no terreiro em frente a porta da cozinha.

Aqui na cidade grande tudo é belo e maravilhoso. Olhado lá da varanda enorme do meu apê, logicamente. A cidade, os prédios, os carros, as pessoas indo e vindo, tudo assim, aos meus pés. Aqui embaixo, como uma sardinha em lata no meio de um angu encaroçado, enleada neste destampatório sem eira nem beira, eu me sinto alma ferida, sobressaltada, furdunciada numa babel pior que a torre iraquiana original descrita no livro de Gênesis.

Apesar de me sentir presa dentro de meu próprio mundinho enigmático, insisto em procrastinar todas as ilusões em que me consumo a bem de mim mesma. Apesar, lado outro, de me aporrinhar numa espécie de câmera lenta, continuo como se tivesse pés e mãos atados em vãs tentativas de me soltar e sair em desabalada carreira. De contrapeso, o sangue fervilha dentro das veias e escorre, nas vísceras, me fazendo ver e não só ver, enxergar nitidamente que estou deveras carente de tudo. 

Desnudada das vestes da Esperança algo maior que ela me permite ficar em ebulição. Procuro fluir e viver intensamente o doce e especial momento que me contempla a cada nova manhã. Amo viver assim, amo correr para cima e para baixo, voando a cada segundo, saltando buracos e desvãos, a cada minuto, me soerguendo a cada hora, a cada instante mágico, como se fossem os derradeiros. 

Vista pela ótica da prosperidade, euzinha não tenho do que reclamar. Aparvalhada, atrapalhada em meio à bagunça organizada desta imensa metrópole, caço a vida, trepada num cavalo arisco, como se procurasse, em algum lugar que não sei onde, uma agulha em meio aos escombros de um terremoto recente. Busco, de contrapeso, a vida com uma excessiva sensação de nutrir o meu ser, o meu âmago, o meu Tudo como se o amanhã... Como se o AMANHÃ NÃO ESTIVESSE MAIS AQUI. 

Título e Texto: Carina Bratt, do sítio Shangri-La – ES/MG, 9-5-2021 

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