Troque o seu medo e o seu ódio pela empatia
da grande imprensa por aqueles que realmente precisam de apoio e solidariedade
para te assaltar sem culpa
Guilherme Fiuza
Antigamente imprensa era
aquilo que te contava o que você não sabia. Antes de pegar o jornal na porta de
casa de manhã podia ter caído um ministro ou estourado uma guerra e você só
ficaria sabendo ali, com cara de sono e os olhos ainda embaçados, ao dar de
cara com a manchete da primeira página. Ao longo do dia, sem ligar a TV você
praticamente só sabia o que se passava na sua casa e no seu trabalho — e para
estar em dia com o país e o mundo era preciso esperar a noite. Isso mudou — e
não estamos falando da internet.
Hoje em dia pode acontecer de
um país inteiro sair às ruas numa manifestação gigantesca e não sair nada na
imprensa. Só um veículo ou outro registrando aquilo — ante o silêncio total dos
que compunham o núcleo da “grande mídia” — leva até o cidadão a achar que as
multidões que ele mesmo viu na rua foram miragem. O sujeito se belisca e corre
para o médico perguntando se está vendo coisas (correndo o risco de o médico
dizer que também não viu nada, dependendo do médico).
Corre então para o
psicanalista, depois para o psiquiatra — que também estavam com a televisão
ligada e não viram nada.
— Tem certeza de que não foi
sonho? — pergunta o doutor.
— Absoluta! Eu fui comprar pão
e vi um monte de gente espalhada pela rua, gritando por liberdade.
— Liberdade? Estranho. Como
elas estavam vestidas?
— De verde e amarelo.
— Verde e amarelo? No Brasil? Estranho…
— Será que eu estou tendo
alucinações, doutor?
— É provável. Que dia você
teve essa visão?
— Foram alguns dias. Mas a
maior foi no dia 1º de maio.
— Hum… esquisito mesmo. Espera
aí, vou fazer um teste.
O doutor volta com as edições
impressas dos mais tradicionais jornais do país do dia seguinte ao do problema
relatado.
— Está vendo aqui? Nada.
Nenhuma manchete. Possivelmente você teve mesmo um surto delirante.
— É grave, doutor?
— Não necessariamente. Tenho
recebido outros pacientes com o mesmo problema. Pode ser uma síndrome
psicológica contemporânea.
— Qual o tratamento pra isso?
— O mais importante é a
segregação.
— Como assim?
— Evitar contato com outras
pessoas que tenham essa mesma síndrome. Ou seja: não falar com quem anda vendo
gente espalhada nas ruas de verde e amarelo. Isso é contagioso.
— Em quanto tempo eu vou ficar
bom, doutor?
— Depende de você. Leva esses
jornais aqui e lê tudo. Não deixa uma linha de fora. Quando você tiver
entendido tudo que aconteceu no dia 1º de maio, pode passar pra edição do dia
seguinte. E fique em casa.
— Posso sair de máscara?
— Não. O problema são os
olhos. Na rua você pode voltar a ter visões de pessoas clamando por liberdade.
Cada recaída vai multiplicar o tempo do tratamento, isto é, a quantidade de
jornais que você terá que ler para se desintoxicar da realidade.
O paciente sai do consultório
aliviado e confiante. Começa então o tratamento de imersão na grande imprensa e
passa a se conectar com um mundo pródigo que o seu negacionismo estava
rejeitando. Nesse mundo ele descobrirá que as ruas não são mais necessárias —
porque existem as telas, e nelas a liberdade e a justiça estão sendo defendidas
bravamente por Renan Calheiros. Como a sensação de que todos os problemas estão
resolvidos pode dar sono, o tratamento inclui pequenos choques sonoros do
senador soprano Randolfe — sempre pedindo a prisão de alguém aos gritos para te
manter alerta.
O tratamento prossegue com as
notícias de que o Supremo Tribunal Federal está reparando uma injustiça
histórica ao inocentar o ladrão mais querido do país. Se você continuasse
vagando pelas ruas em contato com a realidade — essa entidade reacionária —
teria talvez a impressão de que esse ladrão é execrado e o STF é um lixo. Mas
mergulhado na grande imprensa você jamais será acometido desses delírios
raivosos. O amor bandido já está no segundo turno da eleição presidencial do
ano que vem, franco favorito, praticamente eleito. Sem medo de ser feliz, de
ser cínico, de ser egoísta, de ser hipócrita e de ser escroto. Troque o seu
medo e o seu ódio pela empatia da grande imprensa por aqueles que realmente
precisam de apoio e solidariedade para te assaltar sem culpa.
Quem precisa noticiar as
vontades do povo — que está sempre cheio de vontades e nunca satisfeito — se
pode noticiar as vontades do Renan Calheiros?
Outro dia Renan bradou contra
as “baixarias”. Ganhou imediatamente todas as manchetes. Manchetes de uma imprensa
que hoje se apresenta como gladiadora do bem contra o mal. É isso aí. Não pode
haver dúvidas nessa fronteira entre o bem e o mal. E, se você recair e
continuar dizendo que viu gente na rua em defesa da liberdade, os checadores
vão checar você — e concluir que você não existe. Se cuida.
Título e Texto: Guilherme
Fiuza, revista Oeste, nº 61, 21-5-2021
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