Importa perceber que o antissemitismo existe num pedaço razoável da consciência coletiva, e que é velho, e medonho, e que enfrentá-lo depende bem menos de palavras bonitas do que da força de Israel
Alberto Gonçalves
Que o espírito desta canção
Se levante livre e puro
E que te sirva de escudo
Um escudo contra o inimigo
Leonard Cohen, em “Lover, Lover, Lover”, canção escrita em 1973 para os
soldados israelitas na guerra do Yom Kippur
Não ignoro que a recuperação
do sionismo de Herzl, e o êxodo para a “terra prometida”, constituiu a solução
possível para tantos dos sobreviventes da Solução Final. Não me esqueço que a
hipótese dos “dois Estados” foi cinco vezes proposta por Israel e cinco vezes
rejeitada pelos árabes do território, que só a partir de certa altura aceitaram
a equívoca designação de “palestinianos” e que nunca aceitaram a existência do
equivocamente chamado “Estado judeu” nas imediações. Não desvalorizo a circunstância
de jamais ter sido Israel a iniciar a violência com os “palestinianos”, fosse a
guerra “tradicional”, fosse a popular “intifada”, fosse o lançamento de
foguetório sobre cidades israelitas, que sobretudo desde Gaza e desde há vinte
anos é um desporto popular e literalmente rotineiro. Não me é indiferente que,
descontadas as diferenças em capacidade bélica e tecnológica, uma das partes
procure maximizar o número de vítimas civis e a outra procure minimizá-las em
ambos os lados do muro. Não me é indiferente que uma das partes seja uma
democracia, com as virtudes e os defeitos das democracias, enquanto a outra
parte é um enclave terrorista, racista e genocida, com as virtudes e os
defeitos dos enclaves terroristas, racistas e genocidas. Não me é indiferente
que Israel integre um mundo no qual não me importo de habitar, e o Hamas e a
Fatah representem uma considerável fatia do que me é repulsivo.
A benefício da conversa, vou fazer de conta que sim. Durante cinco minutos, fingirei acreditar na propaganda do Hamas, que os noticiários ocidentais reproduzem sem grande contraditório e as “redes socais” amplificam com grande alarvidade. Durante cinco minutos, tenciono descer ao nível mental dos maluquinhos que saem à rua com lencinho “fedayin” e admitir ser verdade que Israel está focadíssimo em eliminar “palestinianos” inocentes. E depois? Nem assim uma pessoa consegue responder à pergunta essencial, a saber: porque é que a opinião pública e publicada dedica ao conflito israelo-árabe a atenção, e a fúria, que não dedica às dezenas de conflitos sangrentos em curso na Terra?
Consulte-se a Wikipedia, que
nos devolve a guerra do Tigré, na Etiópia (4 mil mortos só em 2020), a crise no
Iémen (20 mil mortos em 2020), o conflito do Alto Carabaque (8 mil mortos em
2020), a insurgência no Magrebe (7 mil mortos), a rebelião do Boko Haram na
Nigéria (8 mil mortos em 2020), a guerra civil síria (8 mil mortos em 2020), os
confrontos no Mali (3 mil mortos em 2020), o Darfur (que acumula 300 mil
mortos), a Papua Ocidental (um total de 400 ou 500 mil mortos), a barbárie
étnica no Sudão do Sul (2500 mil mortos em 2020), o genocídio dos curdos pelos
turcos (45 mil mortos até ver), a guerrilha no Uganda e no Congo (900 mortos em
2020), etc. Ninguém liga um chavo. Valha-me Deus: em Portugal mal são notícia
os massacres de infiéis perpetrados por islâmicos em Moçambique, proverbial
país irmão.
Aqui e lá fora, a opinião
pública e publicada assemelha-se imenso ao Conselho de Direitos Humanos das
Nações, que, ainda que os restantes 192 países resolvessem incentivar por lei a
degolação de velhinhas, continuaria apenas a aprovar condenações a Israel. E
não, não é por amor aos “palestinianos”, que em circunstâncias diferentes
mereceriam do ocidental médio a indiferença que lhe merecem os sudaneses, os
nigerianos, os curdos ou os moçambicanos. A opinião pública e publicada aprecia
os “palestinianos” porque os “palestinianos” odeiam Israel.
A razão desta obsessão com
Israel é Israel. Israel padece de um vício lamentável: está cheinho de judeus,
que evidentemente são há dois milénios responsáveis por cerca de 98,6% dos
males da humanidade, contas por baixo. Para cúmulo, os judeus israelitas são a
pior estirpe possível, aquela que possui meios para se defender de assassinos e
não embarca ordeiramente para a fogueira ou as câmaras de gás. É um mito infame
achar-se que o típico simpatizante da causa “palestiniana” não gosta de judeus.
Nada disso. O antissemita contemporâneo limita-se a detestar os judeus que não
acatam com gentileza o destino que os seus inimigos lhes querem impor, em geral
bastante negro. Além de cometer a desfaçatez de ser uma democracia cercada por
tiranias e um símbolo de progresso rodeado de medievalismo, o problema de
Israel é justamente o de servir os respectivos propósitos: um lugar onde os
judeus vivam como cidadãos e não sob o regime do medo, como alvo latente ou
explícito dos humores de próceres e populares. Graças a Israel, os judeus
abandonaram o estatuto de vítimas fáceis que os oprimiu ao longo de séculos. Em
1948, a fundação de uma nação fundou também o judeu soberano, coisa
praticamente inédita e certamente inaceitável.
Não tenciono discutir se o antissemitismo
que protesta a “agressão” a Gaza é herdeiro da crucificação, de Marx ou dos
“Protocolos dos Sábios do Sião”. Os delírios de tarados não justificam o
trabalho. Para o que importa, importa perceber que o antissemitismo existe num
pedaço razoável da famosa consciência coletiva, e que é velho, e medonho, e que
enfrentá-lo depende bem menos de palavras bonitas do que da força de Israel.
Que Israel tenha muita, e por muito tempo.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
22-5-2021
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