O prejuízo de Lula é deixar o país exatamente como está. É não tocar no Brasil Velho que manda desde sempre. É manter errado, ferozmente, tudo o que está errado
J. R. Guzzo
Prepare-se para lhe oferecerem, a partir de agora e até o dia das eleições para presidente de 2022, o conto do vigário do ano: há um “candidato moderado” na disputa, vão lhe propor os vigaristas, e ele se chama Luiz Inácio Lula da Silva. É como um desses telefonemas em que uma moça educadíssima, com voz de artista de novela e alguma explicação muito coerente, diz que você tem um crédito de R$ 1,5 mil a receber por conta de um erro de lançamento do banco — para receber, basta mandar a senha do seu cartão etc., etc., etc. O crédito falso é a história de que Lula virou um modelo de tolerância, de respeito pela opinião alheia e de espírito democrático. A senha do cartão é o seu voto para presidente.
Estão querendo convencer o
público pagante, para começo de conversa, de que Lula está botando na caçamba
do seu caminhão uma quantidade incalculável de votos do “centro” — é exatamente
por isso, aliás, segundo nos dizem os analistas de eleição e os prêmios Nobel
de ciência política, que as “pesquisas de intenção de voto” estão dando essa
montanha de votos para Lula. Não existem tantos lulistas assim no Brasil nem no
mundo; de onde estariam vindo, então, os números publicados pelos institutos?
Estariam vindo, explica a moça do telefone, dos brasileiros que não querem
“extremos”. Muitos dos quase 58 milhões que votaram no presidente Jair
Bolsonaro, diz ela antes de pedir a senha, se cansaram do seu radicalismo e
estão à procura de um sujeito equilibrado, safo e boa gente para 2022. Esse
sujeito é Lula.
Ajuda um colosso, é claro, o fato de que os institutos de pesquisa, a esta altura do jogo, não precisam documentar suas descobertas com nenhum elemento de ordem técnica; isso a lei só exige para depois, já mais perto das eleições. Por enquanto é um vale-tudo em que qualquer um pode dar como verdade matemática, virtualmente, qualquer número que lhe passar pela telha, sobre qualquer candidato, real ou imaginário. Outro passo para criar a fábula de que há um novo Lula na praça, diferente daquele que ameaçava chamar “o exército do Stédile” para castigar os seus inimigos, e vivia dizendo que o problema da Venezuela era ter “democracia demais”, é incluir seu nome entre os possíveis “Bidens brasileiros”. Sim, acredite se quiser: há gente falando, a sério, que o mundo político nacional está preocupadíssimo em encontrar esse possível cruzamento de Atlas com São Francisco de Assis, ou o presidente ideal para qualquer país do planeta — e Lula poderia ser um belo Biden made in Brazil.
Até agora, porém, o comercial
mais ambicioso que o Lula moderado pôs no ar foi a visita que fez a Fernando
Henrique — mais o aperto de mão que recebeu do seu antecessor e, sobretudo, a
inscrição do inimigo de cinco minutos atrás como seu mais recente cabo
eleitoral para 2022. Foi um show de “equilíbrio” — ou, talvez mais
propriamente, de equilibrismo. Fernando Henrique, ao fim desse último número,
declarou inclusive que vai votar em Lula no segundo turno, na disputa com
Bolsonaro. (FHC ainda achou uma boa ideia fazer um pouco de humor: fez questão
de esclarecer aos companheiros tucanos que só votaria em Lula se não houvesse
nenhum “candidato do PSDB” na disputa final. Poderia ter dito que votará num
nome do seu partido se ele aparecer de disco voador no dia da eleição; daria na
mesma.)
A sinceridade dessa
“moderação” centrista de Lula é exatamente a mesma da sua aliança com Fernando
Henrique. Lula vai lá, tira retrato e aparece no jornal; ninguém faz o mínimo
esforço para lembrar que ele passou os últimos dezenove anos, desde que assumiu
a Presidência da República em 2002, dizendo que recebeu uma “herança maldita”
do antecessor. Em nenhum momento, desde então, retirou uma sílaba da
acusação-insulto que fez; ao apertar a mão de FHC, outro dia, a “herança”
continuava “maldita”. Qual é o problema? A hipocrisia é o mandamento número 1
da vida política brasileira; sem ela ninguém vai a lugar nenhum. Do mesmo jeito
que Lula passou a vida falando da “herança maldita”, o PT passou todo o governo
de Fernando Henrique exigindo o impeachment; sua palavra de ordem
número 1 era “Fora, FHC”. Lula, até agora, continua convencido de que ele e seu
partido agiram com perfeição.
O homem “de centro” que
circula hoje na política brasileira jamais admitiu a vitória do adversário nas
eleições presidenciais de 1994; só aceita as derrotas eleitorais porque não tem
força militar para virar a mesa e porque o seu dispositivo MST-CUT-OAB-etc. não
consegue assustar uma galinha de granja. Foi a favor de todas as manobras
frustradas de golpe contra o homem de quem hoje aperta a mão. Sua ideia de
liberdade de imprensa é o “controle social da mídia” pela máquina sindical do
PT. É contra a mínima reforma no sistema apodrecido da política brasileira de
hoje; tudo tem de ficar absolutamente igual ao que é, sempre. Sua democracia
ideal é a da Venezuela.
O prejuízo, como sempre, tem de continuar no lombo da pobrada
A aposta de Lula — e de todas
as forças que querem dar a ele, pela terceira vez, a Presidência do Brasil — é
que a multidão de brasileiros não petistas, e os eleitores que estão
descontentes com Bolsonaro, ou lhe são francamente hostis, esqueçam o país de
quinze anos atrás. Têm de esquecer, em primeiro lugar, que votar em Lula é
colocar no Palácio do Planalto um ladrão legalmente condenado pela Justiça
brasileira, em terceira e última instância, pelas sentenças de nove juízes
diferentes. Têm de esquecer, a propósito, que ele jamais pode contar a ninguém
o fato mais importante da sua vida política atual: o de que os seus grandes
protetores são os ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin, seguramente dois dos
homens mais odiados da opinião pública brasileira. Aparecer na rua em companhia
deles, então, só em caso de delírio — aliás, se nem ele mesmo, Lula, pode
atravessar a pé o Viaduto do Chá, imagine-se com Gilmar e Fachin, um de cada
lado.
Vai ser preciso esquecer, mais
do que tudo, o que foi realmente o governo de Lula — para não falar no de sua
criatura, Dilma Rousseff, autora de uma desgraça econômica pior que a recessão
da pandemia 2021-22. O problema de Lula, na verdade, não é ser de “esquerda” —
ou de “centro”, como ele se apresenta hoje. O problema de Lula é que ele vai
chamar para o centro do governo brasileiro, mais uma vez, as empreiteiras de
obras públicas que mandaram neste país durante os oito anos de seu mandato e os
cinco e meio de sua sucessora. Vai devolver a Petrobras a novas estrelas do
Petrolão — só que agora mais escoladas pelos incômodos que passaram, e sem
nenhum receio de uma Lava Jato. Vai trazer de volta as suas equipes de
marketing, hoje no exílio, com os bilhões que custarão para o Tesouro Nacional.
Vai pôr a política externa brasileira, mais uma vez, a serviço de Cuba, seus
portos e seus médicos.
O desastre de Lula, na
verdade, não será a teoria; será só a prática. Ninguém precisa ter medo de que
ele tome a propriedade dos ricos, ou baixe um decreto criando o socialismo no
Brasil; pode incentivar umas invasões do MST (e principalmente dar dinheiro do
Banco do Brasil aos seus chefes) e se exibir de camiseta vermelha aqui e ali,
mas é isso. O prejuízo de Lula, do PT e de tudo o que vem junto com ele, e aí a
coisa se conta na casa do trilhão, é deixar o Brasil exatamente como está. É
não tocar, nem de leve, no Brasil Velho que manda desde sempre, nem nos seus
privilégios, nem na maciça desigualdade que causa na sociedade. É manter
errado, ferozmente, tudo o que está errado. É socar funcionários e mais
funcionários no serviço público — e achar que resolve o problema da
distribuição de renda dando aumento para o funcionalismo. É ceder, correndo, a
todas os pedidos de aumento salarial para procuradores, juízes, ministros de
tribunais superiores e todos os demais marqueses da alta burocracia estatal.
O golpe que estão querendo
aplicar é esse — garantir que nada mude para melhor no Brasil. O lucro, e
quanto mais lucro melhor, tem de continuar indo para os que sempre lucraram. O
prejuízo, como sempre, tem de continuar no lombo da pobrada que chacoalha no
trem da Central, não tem banco de investimento, nem de qualquer outro tipo, e
está condenada a ganhar sempre menos, porque sabe menos e não consegue aprender
mais. O resto é festinha de Lula com FHC.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista Oeste, nº 62, 28-5-2021
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