Carina Bratt
Bela continuava com seus brinquedos, com suas canções infantis. E, tudo nela, a cada novo minuto, resplandecia uma infância anormal dentro do politicamente normal, ou dito de outra forma mais branda: uma quadra linda e risonha até então sem atropelos de qualquer coisa que pudesse ser considerada paranoica. Os jornalistas de plantão escreviam laudas e mais laudas, enquanto os fotógrafos e os celulares que surgiam como formigas patinando sobre doces, não deixavam escapar uma mosca que ousasse passar voando.
Nesta pega, me solta, me larga, me deixa, viram quando Bela salvou um garoto praticamente da idade dela, de morrer atropelado por um carro que surgiu sem prévio aviso. O menino foi tirado da frente do veículo pela pequena criança, que saltou, aos gritos de socorro e o empurrou para um desvão seguro, evitando um mal maior. Os escribas não perderam tempo. Divulgaram o caso, com dezenas de fotos e as poses mais diversas, observando, em resumo, que ‘não foi a pequena e inofensiva Bela, que salvou o piá, mas incrivelmente, uma providência divina que o puxou dos braços frios da morte’.
Outros mais destemidos e ousados optaram por rotular a coisa de ‘Milagre’. E não ficou só nisto. Fatos posteriores sempre com o condão do inexplicável deixaram os jornalistas e repórteres mais apatetados e boquiabertos. Em meio a toda aquela celeuma sem explicações plausíveis e concretas, Bela acabou por perder a sua tranquilidade. Deixou de ser uma criança dentro de seu período de espírito infantil. A polícia precisou ser acionada para impedir que uma procissão enorme de pessoas em busca de cura para seus males (doenças as mais diversas) invadisse a sua moradia e colocasse, em risco, a vida da pequerrucha.
Bela, se constituía, na verdade, numa pobre menina de um bairro pacato. A vida, ao redor, corria sem atropelos. O pai, que se separara da mãe, ao saber do evento, pela televisão e pelas redes sociais, voltou para casa. Cristina, num primeiro impulso, pega meio que de surpresa e, levando em conta, a situação fora de controle que se formara, acabou perdoando o ex e o aceitando, de volta. Bela foi quem mais amou este momento. Pelo menos o seu meteórico sucesso (que ela não entendia muito bem) serviu para reatar seus pais e refazer a família que se divorciara.
No domingo, a pedido de fãs improvisados, com seus celulares a todo vapor e, uma chusma de fotógrafos de ‘butucas escancaradas, Bela voltou a subir no pé de jabuticaba várias vezes e a pular, lá do alto —, ora de cabeça —, ora de costas, as mãozinhas nos olhos, e se conservar ilesa, voando, plainando, fazendo piruetas, acenando tchauzinhos e mandando beijinhos sem se esborrachar na calçada. As filmagens das câmeras de televisão não deixavam dúvidas de que, realmente, sem nenhum truque, ela voava aparentemente sem cordões ou amarras invisíveis que sustentassem seu corpinho sem permitir que ele desse, frontalmente, de encontro com o cimento.
O padre Avarício, responsável pela paróquia de Santa Guadalupe, foi chamado. Ao presenciar o que seus velhos óculos de lentes grossas viram, ao vivo e em cores, se prostrou de joelhos, se benzeu várias vezes e disse às emissoras ‘que a menina precisava, urgentemente ser exorcizada’. — Estava, sem dúvida alguma, ‘com o diabo em seus calcanhares’. Apesar dos prós e contras, dos crentes e descrentes, da fúria da igreja local, do barato da empolgação de um acervo enorme de pessoas que a cada dia crescia a espasmos entusiasmados, de criaturas que se levantavam de muito longe e acorriam, Bela seguiu com suas aventuras exóticas.
Subia no muro, pulava, saltava, fazia mil malabarismos, andava num pé só, arriava de joelhos, dava saltos ornamentais e, como sempre, sequer tocava o perigoso empedrado. Nas semanas seguintes, a rua inteira se enfeitou de carrinhos de pipocas e de carrocinhas de cachorros-quentes. Em paralelo, dezenas de barraquinhas as mais diversas, triplicou. Com isto, a turba, em profusão, podia comprar de uma garrafa de água a refrigerantes, e saborear os cardápios mais surtidos de sanduíches e comidas feitas na hora. A rua discreta e comedida se transformou numa avenida de feira livre, com um emaranhado de cabeças e pernas transitando, as carreiras, num vai e vem tresloucado.
As mães que proibiram as suas filhas de brincarem com Bela, se achegaram aos pais, pediram perdão e trocaram juras de amizade eterna. Na verdade, a hipocrisia, a cada segundo, dava sinais de que não desistiria dos corações humanos e, por questão da mais límpida falsidade, voltava à tona, com força total. Seis meses e o Jornal Nacional entrou em cena, sendo seguido pelo Fantástico e pelo Domingo Espetacular. Eliana, Ratinho e Rodrigo Faro, igualmente marcaram em cima. Encheram a menina de presentes os mais variados. Empresas diversas fizeram doações de cestas básicas e roupas para um ano inteiro. Outras entraram com dinheiro. Uma indústria famosa, da capital, reformou a casa e trocou todos os móveis. Cristina ganhou um carro zero quilômetro... O pai, a função de vigia numa multinacional. Tudo isto na ganância de certos empresários ‘aparecerem em horário nobre’. Os ‘bonzinhos’ de última hora, promoveram uma espécie de farra carnavalesca dos infernos para ganharem alguns minutos de fama e audiência.
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O inesperado é como um tornado numa fábrica de vidros — Parte UM
Tudo passa
Ponto cego
Maria, carnaval e cinzas
Negativos revelados com imagens diferentes
Qual a nossa concepção de liberdade?
O violento silêncio de um novo recomeço
Nossa que final incrível amei essa crônica, bem elaborada,mostrando como as pessoas se comportam em ocasiões que não podem explicar e se aproveitam pra tirar proveito de uma situacao.parabéns Ca amei.
ResponderExcluirJosiane Neves Silva