domingo, 14 de março de 2021

[As danações de Carina] O inesperado é como um tornado numa fábrica de vidros – Parte Dois – Final

Carina Bratt 

Bela continuava com seus brinquedos, com suas canções infantis. E, tudo nela, a cada novo minuto, resplandecia uma infância anormal dentro do politicamente normal, ou dito de outra forma mais branda: uma quadra linda e risonha até então sem atropelos de qualquer coisa que pudesse ser considerada paranoica. Os jornalistas de plantão escreviam laudas e mais laudas, enquanto os fotógrafos e os celulares que surgiam como formigas patinando sobre doces, não deixavam escapar uma mosca que ousasse passar voando.  

Nesta pega, me solta, me larga, me deixa, viram quando Bela salvou um garoto praticamente da idade dela, de morrer atropelado por um carro que surgiu sem prévio aviso. O menino foi tirado da frente do veículo pela pequena criança, que saltou, aos gritos de socorro e o empurrou para um desvão seguro, evitando um mal maior. Os escribas não perderam tempo. Divulgaram o caso, com dezenas de fotos e as poses mais diversas, observando, em resumo, que ‘não foi a pequena e inofensiva Bela, que salvou o piá, mas incrivelmente, uma providência divina que o puxou dos braços frios da morte’.  

Outros mais destemidos e ousados optaram por rotular a coisa de ‘Milagre’. E não ficou só nisto. Fatos posteriores sempre com o condão do inexplicável deixaram os jornalistas e repórteres mais apatetados e boquiabertos. Em meio a toda aquela celeuma sem explicações plausíveis e concretas, Bela acabou por perder a sua tranquilidade. Deixou de ser uma criança dentro de seu período de espírito infantil. A polícia precisou ser acionada para impedir que uma procissão enorme de pessoas em busca de cura para seus males (doenças as mais diversas) invadisse a sua moradia e colocasse, em risco, a vida da pequerrucha.  

Bela, se constituía, na verdade, numa pobre menina de um bairro pacato. A vida, ao redor, corria sem atropelos. O pai, que se separara da mãe, ao saber do evento, pela televisão e pelas redes sociais, voltou para casa. Cristina, num primeiro impulso, pega meio que de surpresa e, levando em conta, a situação fora de controle que se formara, acabou perdoando o ex e o aceitando, de volta. Bela foi quem mais amou este momento. Pelo menos o seu meteórico sucesso (que ela não entendia muito bem) serviu para reatar seus pais e refazer a família que se divorciara. 

No domingo, a pedido de fãs improvisados, com seus celulares a todo vapor e, uma chusma de fotógrafos de ‘butucas escancaradas, Bela voltou a subir no pé de jabuticaba várias vezes e a pular, lá do alto —, ora de cabeça —, ora de costas, as mãozinhas nos olhos, e se conservar ilesa, voando, plainando, fazendo piruetas, acenando tchauzinhos e mandando beijinhos sem se esborrachar na calçada. As filmagens das câmeras de televisão não deixavam dúvidas de que, realmente, sem nenhum truque, ela voava aparentemente sem cordões ou amarras invisíveis que sustentassem seu corpinho sem permitir que ele desse, frontalmente, de encontro com o cimento. 

O padre Avarício, responsável pela paróquia de Santa Guadalupe, foi chamado. Ao presenciar o que seus velhos óculos de lentes grossas viram, ao vivo e em cores, se prostrou de joelhos, se benzeu várias vezes e disse às emissoras ‘que a menina precisava, urgentemente ser exorcizada’. — Estava, sem dúvida alguma, ‘com o diabo em seus calcanhares’. Apesar dos prós e contras, dos crentes e descrentes, da fúria da igreja local, do barato da empolgação de um acervo enorme de pessoas que a cada dia crescia a espasmos entusiasmados, de criaturas que se levantavam de muito longe e acorriam, Bela seguiu com suas aventuras exóticas. 

Subia no muro, pulava, saltava, fazia mil malabarismos, andava num pé só, arriava de joelhos, dava saltos ornamentais e, como sempre, sequer tocava o perigoso empedrado. Nas semanas seguintes, a rua inteira se enfeitou de carrinhos de pipocas e de carrocinhas de cachorros-quentes. Em paralelo, dezenas de barraquinhas as mais diversas, triplicou. Com isto, a turba, em profusão, podia comprar de uma garrafa de água a refrigerantes, e saborear os cardápios mais surtidos de sanduíches e comidas feitas na hora. A rua discreta e comedida se transformou numa avenida de feira livre, com um emaranhado de cabeças e pernas transitando, as carreiras, num vai e vem tresloucado. 

As mães que proibiram as suas filhas de brincarem com Bela, se achegaram aos pais, pediram perdão e trocaram juras de amizade eterna. Na verdade, a hipocrisia, a cada segundo, dava sinais de que não desistiria dos corações humanos e, por questão da mais límpida falsidade, voltava à tona, com força total. Seis meses e o Jornal Nacional entrou em cena, sendo seguido pelo Fantástico e pelo Domingo Espetacular. Eliana, Ratinho e Rodrigo Faro, igualmente marcaram em cima. Encheram a menina de presentes os mais variados. Empresas diversas fizeram doações de cestas básicas e roupas para um ano inteiro. Outras entraram com dinheiro. Uma indústria famosa, da capital, reformou a casa e trocou todos os móveis. Cristina ganhou um carro zero quilômetro... O pai, a função de vigia numa multinacional. Tudo isto na ganância de certos empresários ‘aparecerem em horário nobre’. Os ‘bonzinhos’ de última hora, promoveram uma espécie de farra carnavalesca dos infernos para ganharem alguns minutos de fama e audiência. 

Qualquer de fora, em sã consciência, poderia ver e, não só ver, sentir a frivolidade, a impostura, o querer se dar bem na mídia, tudo de conformidade para sustentar o engrandecimento da banalidade em sua melhor forma de expressão. A perfídia, a tredice, o fingimento, a maldade, o tirar proveito do alheio em conveniência própria, tinham passagem livre. Sem falar numa quadrilha de políticos e líderes religiosos que, em nome de votos futuros e, pior, avacalhando a fé em nome de Cristo Jesus, não deixaram de enlamear o pedaço.

— Belinha — pediu Fátima Bernardes: canta para nós uma de suas canções preferidas:
— ‘O Cravo brigou com a Rosa
A Rosa pôs se a chorar
O Cravo teve um desmaio
A Rosa pôs se a chorar’.

O portento, entrementes, chegou ao fim. O anjo que, no velado dos olhares humanos protegia a doce e mimosa criança, por ordem do Pai, acabou: 
— Belinha, minha princesa. Chegou a nossa hora. Precisamos dar adeus a tudo isto...

De fato, assim aconteceu. Três dias depois, a graciosa se hospitalizou, em face de ter um probleminha se agravado no coração. Ninguém sabia desta enfermidade. Morreu, Bela, a eterna estrelinha e deixou a todos sem saber o que fazer. No velório, ou mais precisamente na hora de se fechar o esquife, o prodígio maior se abrilhantou diligente e zeloso, sobretudo, inesquecível. Bela se levantou da urna mortuária, ou melhor, segurada cuidadosamente como uma peça tenra por dois servidores de Deus que a ajudaram, agarrados em suas mãos. Magistralmente, enquanto a princesinha sorria para os agrupados e esvoaçava para fora da capela, um desbaratamento indescritível se fez pungitivo. Não teve viva alma que continuasse ali.

Teve início um corre-corre desumano e bárbaro jamais descrito pela imaginação de quem vive de sonhos. O que se viu, quase inenarrável. Gente pulando pela janela, pessoas sendo atropeladas. Sem falar nos incrédulos que se entregaram a um berreiro jamais ouvido. Uma galera de senhoras desmaiou. Ambulâncias foram chamadas. Jornalistas, cinegrafistas, repórteres e locutores das rádios e periódicos da capital e das cidades vizinhas, que transmitiam ao vivo, aderiram ao ‘pernas, para que te quero’, e queimaram o chão. Literalmente debandaram. Só a mãe e o pai ficaram quietos, num canto, meio atordoados, porém, deixando as coisas todas se acalmarem. Bela, ao final, saiu da capela de forma triunfal, voando, devagar, em direção ao infinito. Antes de desaparecer, de vez, em meio a um sol de um dia bonito, mandou beijos e desenhou coraçõezinhos aos seus genitores. Da plebe ensandecida e da gentalha amedrontada, não restou um sequer... Um único ser respirante para continuar postado ali, agarrado às paredes e continuar narrando a história do que aconteceu ‘DEPOIS’.

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 14-3-2021

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Tudo passa 
Ponto cego 
Maria, carnaval e cinzas 
Negativos revelados com imagens diferentes 
Qual a nossa concepção de liberdade? 
O violento silêncio de um novo recomeço

Um comentário:

  1. Nossa que final incrível amei essa crônica, bem elaborada,mostrando como as pessoas se comportam em ocasiões que não podem explicar e se aproveitam pra tirar proveito de uma situacao.parabéns Ca amei.
    Josiane Neves Silva

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